sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Balanço

Que não se esqueça 2010, nem nenhum outro ano que tenhamos vivido, que se lembre tudo e que com isso, possamos ser felizes em 2011 e nos que ainda nos faltam viver. Não sempre, que assim também chateia, mas que pelo menos os momentos bons que tivermos consigam fazer com que percebamos, que a melhor coisa que temos é a a vida em si, a vida em nós.
Bom 2011 a todos!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Um dia conto (continuação)

Mas depois um abraço não me chega que eu já sei e hei-de querer logo outro, ainda mais apertado, que ela, se me sente assim outra vez, cai em si e percebe que viver sem mim é estar a mentir a si própria.
O que vale a vida sem ilusões?

- Quando chegarmos tens que me distrair a governanta que ela não me pode ver com isto.

- Como é que tu queres que eu faça isso, se nunca lhe disse mais que um bom dia?

Raios que partam esta gente que vive estes dilemas comportamentais! Eu só quero a porra de um abraço!
É meia noite e a esta hora tudo parece voltar a nascer de novo, as horas que voltam ao zero, a noite que passa a madrugada, o sofá a cama improvisada e eu que continuo na mesma, não começo nem acabo, e lá vou seguindo o tempo que vejo passar por mim quando olho para trás.

- Eu só quero um abraço teu!

Sei que vai repor tudo outra vez, como a meia-noite que chega e põe as horas a zero, como o ano que acaba e começa outro que nos renova a esperança em quase tudo o que falhámos, ou adiámos para outro dia indefinido.
Um homem vive de esperanças e sonhos.

- Um dia vais perceber aquilo que eu valho!

E aí dispenso estes feitiços estúpidos, com quem me iludo nas minhas esperanças paranormais e lá vou reunindo umas forças para levar a vida para a frente. As coisas são mesmo assim, a gente vai juntando tanta coisa de que não nos queremos lembrar, que construímos outras para nos distraírem dos demónios que espreitam nos baús da nossa mente.

- Toca à campainha e distrai-me a mulher que eu vou entrar pelas traseiras!

- Só me metes em filmes pá!

Curtas e longas metragens, ensaios e trailers de películas apenas imaginadas e que depois quase nunca concretizamos. Não sei como serão as mulheres, mas os homens vivem dos filmes que fabricam enquanto sonham acordados, num trabalho de realização medíocre que termina quase sempre num orgasmo a dois, ou numa submissão por KO a alguém que nos quer fazer frente.

- Qualquer dia perco a cabeça!

E um dia pode ser que as palavras deixem de me sair assim, para saírem secas e gastas, como tudo o que me rodeia. O amor, sempre o amor, é como a primavera da vida, torna o verde mais fresco, o azul mais profundo, os contrastes em harmonia, pena é que não surja também todos os anos à data marcada e se nos escape por entre as mãos, prometendo tudo para depois quase nada cumprir.

“Vou casar no Verão, espero que possas estar presente... Beijos”

O bicho a contorcer-se no chão do quarto e a água a escorrer aos meus pés fingindo lágrimas de crocodilo, porque naquele momento não só te perdi a ti, como ao teu fantasma que me perseguia, e ali, finalmente, pude sentir-me tão livre e tão leve, que o vento levou-me pela janela e eu nunca mais me encontrei.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Já não há revoluções

Há-de haver alguém que um dia acorde velho, de testa enrugada e orelhas crescidas de tanto ouvir o que os outros dizem, mesmo sem querer, mesmo sem que sequer dê por isso. Que acorde um dia e sinta que grande parte das coisas que achava importantes, lhe são agora estranhamente irrisórias, como se a vida tivesse sido encurtada, e só lhe sobrasse o amor e o respeito que se conquista à custa de atitudes.

- Eu já não tenho tempo para sonhar!

E eu que não consigo imaginar a vida sem sonhos a ouvir isto. Dito pelo mais velho dos 3 homens, que estavam sentados comigo na mesa do café que agora me serve de refúgio, e onde, sempre que consigo, escrevo frases soltas que depois hei-de juntar para formar um texto qualquer, sobre qualquer coisa que nunca sei bem o que será.

- Eu fui perseguido pela PIDE só por ser amigo do Zeca Afonso!

E eu tenho medo do dia em que acorde e sinta que já não tenho tempo para sonhar. Os velhos a mim parecem-me crianças sem medo

- Hoje já não há revolucionários!

Acho que se esgotou o stock há algum tempo, mas espere um bocadinho que eu vou ali ao armazém ver se ainda há alguma coisa.

- Nada!

E a resignação que chega e já não quer sair.

- Quer que eu veja se temos noutra loja?

Não quero obrigado, que isso não se arranja assim à segunda tentativa. Acho que nisso os revolucionários são como as mulheres, ou não há dúvidas de que valem a pena, ou então mais vale não andar a insistir.

- Já não há homens como antigamente...

Hoje quando cheguei a Lisboa nascia um arco-íris nas Amoreiras que só terminava na outra margem do rio Tejo.

- Paz sim, Nato não!

Comunistas barrigudos, de bigode farto e cara de beberrões, freaks de rastas a tocar tambores e pandeiretas, de cartaz numa mão e garrafa de cerveja na outra, policias que mais pareciam robocops a cada esquina, alinhados em linhas paralelas às ruas sobrevoadas por helicópteros, com amostras de anarcas dispersos e demasiado jovens para poderem sequer ser independentes, quanto mais anarquistas a sério.

- Onde é que você estava no 25 de Abril?

E eu não quero responder que estive em casa, ou que nem dei por isso se dar. O arco-íris tomou-se-me como um aviso qualquer e ali estava eu no meio daquele circo todo. Pareceu-me ver ao virar da esquina alguém erguer um megafone e começar ali uma manifestação sozinho, mas o megafone afinal era da Sagres e dali só se ouviu vir um arroto, que me pareceu outro sinal qualquer para me ir embora.

- Quarta-feira fazemos greve!

Quando era criança queria ser sempre da equipa que ganhava, porque é que agora ando preocupado com a justiça das coisas?

- Não há falta nenhuma! Ganhámos!

Acho que foram as pessoas que me mudaram, os amigos que escolhi não perder, as lições de criança dos pais que a gente vai percebendo em pequenas coisas, as provas de amor que não se agradecem, as amizades construídas degrau a degrau, os silêncios conquistados, a paz interior em minutos que nos valem uma vida inteira.

- Hoje já ninguém se importa com nada!

Agarramo-nos a quê se parece que não temos nada quando há tanta coisa para se querer ter? Às vezes parece que já conseguimos riscar mais um ponto da nossa extensa lista de afazeres mundanos, e lá aparece um novo a repor o peso que carregamos, que canseira... Digo-vos, esta vida assim é fodida!

- Vou para o Rossio ver se acontece alguma coisa...

Um circo montado para depois não acontecer nada, isto sim, é um desperdício de tempo e dinheiro. Acho que vou ser a vida toda um sonhador, que se passeia pela praça a fingir-se interiormente o revolucionário que os velhos choram a ausência. Traçando estratégias, delineando possíveis fugas que me libertem do peso de sentir como é frágil a nossa liberdade.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Outra vez


Andamos para aqui perdidos no escuro, sem que saibamos o caminho de volta ou o que nos espera no passo seguinte, desconfiados uns dos outros, à espera de apanhar uma mentira que desculpe isto, este sitio que ninguém quer e que nos ferve nas mãos calejadas de tantos anos no mar.
33 mineiros saem do escuro de um buraco no fundo da terra, vêm em gaiolas para cima, um a um de óculos escuros a enfrentarem sozinhos as luzes da ribalta, porque agora são estrelas e nós afinal vivemos num big brother ranhoso, de cinismo refinado e bem temperado.
De uma fotografia de um obituário manhoso de um jornal chileno a super estrelas mundiais, e há quem lhes peça conselhos e lições, enquanto outros apenas os querem ver num estádio qualquer ou num anúncio ao seu novo produto que se quer vender. 

- Viva o Chile!

Viva mas é Portugal, que parece que estamos velhos e cansados demais para que nos sobrem muitos mais anos neste arrastar penoso. De mão estendida, a falar portunhol e inglês de Albufeira, dizendo que sim a quem nos acena com um molhe de notas maior, de meias rotas e manta curta e estreita, salva-nos o tempo que ainda vai sendo ameno e amigo.

- Eu se fosse jovem saia já deste País!

Eu quando for velho quero ter um bocadinho de orgulho na minha terra, em vez de dizer estas coisas aos jovens, que eu prefiro que eles cá fiquem para cuidar de mim e dos outros como eu. Trocam-me as botas já rotas, arranjam-me um casaco quente, puxam-me as mantas para cima que agora já faz frio outra vez.
Acho que quero nascer outra vez e fazer tudo de novo.

- O tempo não volta atrás, o que fizemos feito está...

Dar os pimeiros passos outra vez e aprender a andar de bicicleta sem rodinhas de apoio, cair e descobrir outra vez que a dor passa mas as cicatrizes ficam, e ir perdendo o medo assim. Vestir uns calções e uma t-shirtt e sair para a rua para brincar com os amigos e inventar todos os jogos possíveis, construir os meus próprios brinquedos e conseguir que os outros os queiram também, sem invejas de olhares desdenhosos que isto dá para todos.

- O que nós devíamos era ter uma ideia para vender

Ou então arranjamos muitas para dar e oferecer que isso do dinheiro qualquer dia entra em desuso e depois como é? Perguntamos aos 33 mineiros que passaram de um obituário manhoso para a ribalta, o segredo de um esquema assim e pomos mãos à obra, mas todos que senão não funciona. Inventamos um novo astrolábio que nos oriente no espaço, descobrimos um planeta com uma terra como a nossa e construímos alguma coisa que nos leve até lá num piscar de olhos.

- Até me dava jeito um terreno ali em Marte!

Ficamos com todos os jovens que pudermos ficar e os mais velhos que façam uma plástica ou outra, para que pelo menos de aspecto possamos ser todos iguais, cheios de esperanças e sonhos, sem desilusões que nos façam pensar duas vezes, e em vez de viver no passado, fazer tudo sem olhar para trás.

-

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Adeus

Dizias sempre alguma coisa que me deixava a pensar que conseguias ler a minha mente, e que de alguma forma, me conhecias melhor do que aquilo que eu queria que alguém me conhecesse. Metias-me medo porque apesar disso, usavas esse poder para me provocar, como se quisesses testar os meus limites e fazer de mim, só mais um individuo da tua amostra. Calavas o meu desconforto com um sorriso que te enchia a cara e me fazia sorrir de volta. Tinhas umas sardas que pareciam falar comigo e uns olhos com tanta energia que me furavam a alma, num rosto que me pareceu familiar assim que te vi. Talvez num sonho, numa premonição inconsciente da marca deixada pela passagem do teu sabor na minha vida.

- Aposto que não és capaz de sair do carro

Não é que não fosse capaz, mas apetecia-me ficar dentro do carro contigo. Nunca mais te vi e ainda bem que não saí naquela noite escura na serra. Acho que fomos para casa e fizemos amor, pelo menos eu, porque nunca percebi o que sentias por mim. Às vezes lembro-me de ti, havia qualquer coisa entre nós não achas?

- Vamos para o fim do mundo?

Nessa altura ia contigo para qualquer lado, acho que ainda não tinha havido chamadas sem resposta do outro lado, nem desculpas esfarrapadas que eu não queria contrariar, para não desperdiçar o pouco que tempo que me dispensavas. Lembro-me de te ter apanhado uma tarde à porta de casa e me apareceres com o cabelo ainda molhado, num sorriso que te disfarçava as sardas que falaram comigo. Vamos para o fim do mundo que hoje só me apetece estar sozinha contigo, sem um mar de gente a separar-nos, sem desculpas para dar nem perguntas para guardar.

- Não tínhamos combinado ir à praia ontem à tarde?

- Nem imaginas o que me aconteceu

No fim do mundo pus-te o apelido Lisboa, de cabelos louros em vez de negros como sempre a imaginara. Lembro-me que não achaste grande piada à minha metáfora apaixonada, e esboçaste um sorriso falso que fez as sardas fecharam-se num silêncio que me custou a digerir. Acho que nessa altura já tinha deixado de te tentar perceber, eras um fim anunciado que eu apenas tinha que aproveitar até o inevitável acontecer.

- Sai da minha casa!

Levantaste-te sem me olhar nos olhos e saíste porta fora, e lembro-me de ter sentido a tua falta assim que ela se fechou nas tuas costas. Ainda fui atrás de ti para ver se voltavas e te deitavas na cama a olhar para mim, de cara cheia pelo sorriso e as sardas a chamarem-me para um abraço de despedida. Liguei-te no dia seguinte e não atendeste, acho que foi aí que percebi que há coisas que não podemos perder, um último beijo, um olhar que diz adeus com carinho, os nossos corpos  unidos com cada pedaço de pele a despedir-se do outro,

- Adeus!

num final de sabor agridoce, que te fechasse numa pelicula qualquer e te impedisse de andares por aí como mais um espirito à solta.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Um dia conto

- Para que queres esse bicho?

- Que tens tu com isso?

Uma alforreca num saco de plástico transparente cheio de água do mar, do norte, que pelos vistos era melhor para manter o bicho vivo, como  ingrediente de um feitiço daquele livro na cómoda da governanta, uma estranha mulher africana que quase não falava, nem precisava, só ouvia, ouvia tudo. Já por várias vezes me tinha parecido uma esponja de todos os nossos gestos, de todas as nossas frases e expressões, mesmo quando julgávamos estar a sós, como quando a apanhei a ouvir atrás da porta e mais tarde, a falar sozinha no quarto,


- Como é que o menino Pedro ainda é capaz de falar com aquela mulher?


Também não sei confesso, mas há coisas que não podem ser contrariadas, destinos traçados por escolhas feitas e "nãos" adiados. Só pode ser bruxa a mulher! Mesmo angustiado pelo hábito das pequenas derrotas anteriores, o feitiço vira-se contra o feiticeiro se isto da alforreca funcionar, se bem que isso do feitiço é o que menos importa, porque eu só lhe quero sentir um abraço outra vez.


- Vê lá mas é se não me entornas essa merda toda aqui no carro!


As pessoas lá me vão aturando, nem sei porquê às vezes, serei só eu ou também eles terão a esperança secreta de que um dia, mais tarde ou mais cedo, nascerá em mim um novo homem? Um parto eterno, sem dor maior nem menor, num silêncio que só se desfaz nestas conversas que vamos mantendo com nós próprios. Mas as coisas são o que são, e agora aqui estou eu fiando-me num livro de uma governanta africana, que se não é bruxa, ouve atrás das portas e lamenta o rumo da vida dos outros secretamente, provavelmente uma louca, se é que esse termo significa alguma coisa.

- Está descansado. E não ligues o rádio que isto deve ser feito em silêncio.

Eu e o silêncio, já devia saber que isso é coisa que não existe, que eu bem sei que temos sempre uma coisa cá dentro a traulitar-nos palavras, e se eu me ponho para aqui a martelar sobre o que pensará quem me vir com estes apetrechos, ainda lhe peço para parar e despejo isto na berma da estrada e lá se vai o abraço e a lição àquela mulher.

- Depois admiras-te que te chamem maluquinho!

Pouco importa que me chamem maluco, quando há para aí tantos, aprumados entre 2 paredes de regras intermináveis, com ares de gente respeitável e séria, sorrindo ordeiramente ao destino que lhes está reservado.

- Seja o que deus quiser!

E se ele não quiser nada nem sentir nada? Se não vir nada, ou se não se importa sequer?  Ainda terei direito ao meu abraço?

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Relatos de um festival

- Deve saber bem acordar todos os dias com vista para esta baía!

Ia a caminho do castelo quando ouvi isto vindo de um grupo de quatro jovens sentados na esplanada do restaurante Mexilhão.
Gosto de ver Sines assim, vestida com o colorido de um corropio de gente para todos os gostos, ou quase, porque durante estes dias, por aqui, não há lugar a cinzentismos dos velhos do restelo habituais.
A música começou em Português, mas esperava-nos um mergulho nocturno por sons do Continente Americano. Um bom ponto de partida, unir os dois lados do Atlântico com dois palcos a servir de ponte.

- Nunca vi um festival com um ambiente assim!

Uma pessoa derrete-se a ouvir estas coisas, afinal o festival é a minha terra e essa, já não consegue viver sem as músicas que lhe trazem o Mundo por alguns dias.
À saída do castelo,

- Desculpa, ainda vais entrar ou posso ficar com a tua senha?

- Epá, olha há ali uma bilheteira em baixo, se calhar é melhor ires comprar bilhete, sempre davas dinheiro a quem faz isto, e olha que eles bem precisam...

Que raio de gente é esta que nem serve para comprar bilhete para um festival? Para mim o  FMM passa-se no castelo, ou nasce lá pelo menos, porque depois espalha-se dali para todo o lado, como a brisa que nos traz a meio de um concerto o cheiro a maresia.
O parque de campismo cheio, tendas na relva da APS, seres a deambular a toda a hora, por todo o lado, sem rumo aparente, preenchendo até os sítios que nos habituámos a ver desertos, bancos vazios agora acompanhados, canteiros que servem de poltrona, muros que são por uns minutos mesa de jantar e quase aposto que Sines gosta destas aventuras.

- Ai! Ainda agora aqui passou um casal, os dois descalços cada um com a sua garrafa de vinho debaixo do braço veja bem!

- Isso a mim não me faz confusão nenhuma, só não percebo porque é que os concertos da Avenida não são pagos.

Nem eu percebo, mas isso são contas de quem não as sabe fazer. Dois mais dois afinal são três de maneira que me é difícil tentar perceber alguns porquês. Nem estou para isso aliás, que o nosso Presidente diz que isto sim é serviço público, e se é público que se lixe a diferença deste dois mais dois, porque o que se arranjou aqui foi um espírito que não se pode perder e isso não tem preço. Daqui a alguns anos, quando estes jovens que em paz nos invadem forem pais, quando forem chefes, nem que seja de si próprios, quanto irá valer a imagem que guardam da nossa terra?

- O melhor de tudo é que aqui é tudo à borla! Só gastas dinheiro em comida e bebida.

Que isto dos espiritos não tem preço, e a coisa cria-se e depois não apetece nada deixá-la ir, assim de mão beijada à mercê de um prejuízo mais escondidinho.

- Ainda estou para ver o que vai acontecer ao FMM quando o Coelho sair daqui.

Não acontece nada, que o homem lá por ter deixado criar isto não lhe fica assim com o exclusivo e acho que ninguém quer perder este festival, mesmo que não dê dinheiro por x menos y. Ainda não sei como, mas qualquer dia ainda vos provo que a riqueza de um povo não se mede apenas pelo seu ouro em caixa.

- Há uma tenda na pedreira com festa até as quatro da tarde!

- Estes moços até metem medo...

Eu também tenho medo de chegar ao final de Julho e a minha Sines deserta, de bancos solitários, canteiros vazios, noites despidas, os mesmos sítios desertos, como costumam estar sempre, dia após dia. Mas agora passa, quando descer as escadas e me misturar com a maré de gente que inunda Sines, que me inunda a mim, da ilusão de que isto podia ser tão diferente daquilo que realmente é.

Aproveitem!

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Meias viagens


É hora de falar de vida, de coisas por fazer, de coisas que já fizemos, de amores que já vivemos, do amor que ainda vamos viver, da terra, do mar, do céu, do pó a que estamos destinados a voltar, numa forma ou noutra, não sabemos, nunca sabemos. Coisas que acontecem, pequenas, grandes, todas diferentes para tantos outros olhares diferentes, de tantos outros ângulos possíveis de ver a mesma coisa. Nunca vamos esquecer os velhos ou novos que perdemos, pelo menos não os que nos alimentaram da ilusão de que as pessoas boas vivem mais tempo e que principalmente, vivem melhor.
E eu aqui, depois de tanta coisa que me aconteceu desde o último post que escrevi. A uns dias de partir em viagem, as coisas parece que se dispersam no ar e surgem de novo quando reparamos que ainda cá estamos. Assuntos que queremos deixar resolvidos, vacinas para pôr em dia, tratamentos às costas que entretanto se desmancharam durante o sono, pesquisas de sítios para dormir, de transportes baratos, dicas que queremos guardar e não conseguimos, projecções antecipadas dos sítios onde vamos estar, e os dias passam assim a muito custo, numa contagem decrescente que a esforço se vai evitando.

- Tenho um feeling que amanhã embarcamos!

Eu também tenho, mas não quero dizer senão depois custa mais. A merda de situações em que eu me meto. À minha frente um candeeiro aceso ilumina a mesa onde pouso o caderno no qual me vejo obrigado a escrever, logo agora que tinha decidido tirar férias disto também. São 2 da manhã em Zurique e eu não quero ir dormir com este corropio dentro de mim. Escrever foi coisa que nunca me deu sono, mas tu já dormes e eu tenho qualquer coisa para arrancar cá de dentro.

- Vais pôr o despertador para que horas?

- Lá para as 8 horas daqui...

Sinceramente acho que nem preciso de despertador, mas é melhor pôr à mesma porque senão é que não durmo mesmo.
Amanhã tentamos de novo embarcar e enquanto isso, aproveitamos para conhecer melhor Zurique, de mochila às costas, agora ainda mais desmanchadas. Cheira-me que ainda vai dar para fazer amigos e dar umas braçadas no canal do rio Limmat com umas cervejas pelo meio.

- Pelo menos conhecemos mais uma cidade...

- Para mim já valeu a pena!

As pessoas mudam, será que as terras também? Ficamos presos às imagens que guardamos, são a nossa vida toda e de certeza que mudam ao longo do tempo. Podemos guardar imagens de coisas que inventámos desses sítios, cirurgias estéticas das recordações visuais que as tornam mais interessantes, que nos tornam mais interessantes. Somos o que vivemos e enquanto vivemos vamos sendo, cada vez mais nós, cada vez mais próximos do que somos suposto ser. Ou não é suposto nada e apenas vamos sendo o que vivemos sem que isso nada acrescente de novo à nossa essência.

- Se eu pudesse passava a vida a viajar!

Se eu pudesse escolhia ser feliz sem meias felicidades, sem meias verdades de bases defeituosas, meias certezas, amores ao meio, viagens pela metade, histórias contadas em duas mãos, de sorrisos escondidos e lágrimas fingidas.
Ficamos assim e cá para mim, se puder escolher só quero ser eu e logo se vê o que acontece.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A morte saiu à rua

No passado Domingo, infelizmente, tive uma notícia que me deixou muito abalado. Sem saber explicar estive muito mal-humorado na noite anterior, e mesmo a noite de sono não me deixou com melhores modos. Pensava eu que era cansaço ou mais uma daqueles momentos em que me apetecia ter o Mundo só para mim, talvez fosse, não sei…

O meu telemóvel tocou duas vezes, e em seguida como não atendi, tocou mais duas o do trabalho, o que sendo Sábado já não a agoirava boa coisa. Ligo de volta e do outro lado uma voz que me é muito querida, dá-me a notícia:

- Morreu o Velho Peniche, e o funeral é hoje às 18 horas.

"Velho Peniche", era deste modo que o tratávamos lá por casa, pois isto de ser mais velho deve ser um orgulho e não um defeito. E neste caso, era realmente sempre com muito carinho que falávamos dele.

Pelo que me contaram já à alguns dias que estava num Hospital em Lisboa, muito debilitado. Nessa altura fiquei muito irritado, como é possível não ter sabido disso? Aqui tão perto de mim e eu não o fui visitar, dar-lhe um pouco de apoio, ou simplesmente cumprimenta-lo… e eu que não o via há tanto tempo…

O Velho Peniche, sem eu saber explicar porquê, sempre foi uma figura muito importante para mim, aliás saber sei, mas é estranho como é que algumas pessoas nos marcam tanto durante a nossa vida. Ele foi sem dúvida uma figura incontornável no meu crescimento, sempre com o seu ar sereno, figura esbelta e bem composta, desde muito novo me habituei a vê-lo à porta da Piscina ou a passar nas ruas de Sines, sempre com uma voz calma e um olhar que nos transmitia uma serenidade e uma noção de cidadania espantosa.

Aí está alguém que partiu cedo demais. Pode haver quem diga que já tinha idade para deixar o nosso mundo, que já tinha feito a sua parte, que já tinha deixado o seu legado, é bem verdade, mas de qualquer modo, algumas pessoas deviam ficar connosco só mais um bocadinho, pois têm ainda muito para nos ensinar e para dar.

Sr. Peniche… não me lembro da última vez que o vi, e muito menos do que falámos, mas tenho a certeza de que será mais uma daquelas pessoas que quando chegar o meu dia, e espero que ainda demore, pois tenho muito para fazer, vai lá estar onde quer que seja para me receber:

- Bem-vindo, não tenhas medo que isto até é bom!

E nessa altura, tal como acontecia sempre que o via, percebo que com calma e paciência tudo é levado a bom porto!

sexta-feira, 18 de junho de 2010

A eternidade das palavras

Ainda hoje tinha passado pelo seu blog, ia lá espreitar quase todos os dias, à espera de novas palavras que me pudessem enriquecer, como o fizeram quase todas as que li dele. Nos últimos tempos nada de novo porém, apenas excertos de discursos antigos, de entrevistas já gastas e de frases passadas, nada de novo, tal como a morte que lhe levou o corpo, essa, com a idade da própria vida.
Eu sei que pessoas destas ficam eternamente gravadas nas suas palavras, impressas em páginas que de vazias e brancas passaram a sonhos e epopeias, a histórias que nós sozinhos nunca seríamos capazes de imaginar, mas de ora em diante, e é isso que me dói, não mais teremos a sua reacção a acontecimentos presentes, no entanto as suas palavras moldar-nos-ão para sempre só de as termos ouvido ou lido.
Morreu Saramago e tocam os sinos lá na igreja da aldeia da Azinhaga que o viu nascer. Porque há pessoas que quando falam nós ouvimos, que quando escrevem nós lemos depois, ou deveríamos todos ler, pessoas que nos preenchem sem que sequer as conheçamos. Já viram o valor que isso tem?
Morreu Saramago, mas a suas palavras continuam vivas até que se nos apague a memória e morramos nós também. Por esta hora ele já descobriu o que há para além da efemeridade da vida, pena não nos poder escrever um livro para contar como é depois de tudo isto, dificilmente alguém o contaria melhor.
Epopeias de passarolas voadoras, de amores singulares, de cegueiras generalizadas, de mortes interrompidas, de penínsulas a naufragar. Saramago não era só um escritor que contava histórias, mas sim alguém que despertava consciências pela contradição da ideia feita, um inconformado com olhar de criança curiosa, de língua afiada e pensamento próprio.
Saramago não é só nosso, é do mundo inteiro, mas eu vou guardá-lo sempre como um Português que apesar de exilado da estupidez, nos fez mesmo crescer três centímetros, que nunca desistiu de agitar as águas e despertar consciências adormecidas neste nosso País à beira mar plantado e que por isso, nunca desistiu de nós, Portugueses.

"O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever", disse ao receber o Prêmio Nobel, em 1998, citando o avô, analfabeto.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O sono

- Não apagues a luz do quarto!

- Eu não apago. E estou a passar a ferro aqui no corredor.

Depois de me dar um beijo de boa noite. Aposto que só ficava até eu adormecer, que de vez em quando senti-a a espreitar-me para ver se eu já dormia.
Sempre vivi com os meus demónios, nessa altura eles eram monstros, metade humanos conhecidos, metade animais, cavalos, lobos, burros, porcos, um jardim zoológico de aberrações a atormentarem-me até que o sono chegasse e me levasse com ele para parte incerta. Havia dias piores que outros, como hoje afinal, às vezes ela apagava a luz, encostava a porta e eu não dizia nada e ficava ali, tapado com as mantas, imóvel, para que nada nem ninguém sentisse a minha presença.

- Eu sei que tu lutas contra o teu lado negro!

Há frases que quando são ditas me ficam a ecoar durante algum tempo. Uma frase que só um amigo sabe dizer, uma resposta inesperada, uma expressão ouvida pela primeira vez.
Hoje já não são monstros os meus demónios, são mais ideias e sentimentos, resquícios da infância mimada e rebelde.

- Isto é obra do Bruno!

Nunca era grande obra, um copo partido escondido a um canto, uma garrafa de azeite partida, qualquer coisa estragada.

- Mas porque é que hei-de ser eu e não o Zé Carlos?

Nem valia a pena responder, que eu já sabia a resposta e até gostava dela.
Mas os demónios não se escondem assim e acho que escondê-los seria esconder-me a mim também e isso eu não quero.
Hoje já não são monstros, são outras coisas, mas aparecem quase sempre à noite, quando estou sozinho ou quando me deito sem sono. Habituei-me a deitar-me quando já não suporto o sono, ou a adormecer no sofá. Lavo os dentes com antecedência e ponho-me a ver televisão ou a passear pela internet, como que a dizer, ainda cá estou, não se esqueçam de mim se cá vierem. Se calhar o medo dos monstros fez-me perder o prazer de dormir, ou isso ou o outro medo, o de desperdiçar parte da vida a dormir e perder-te quando ainda me falta encontrar tanta coisa.
Se calhar é melhor não apagar a luz, que assim se tu passares aqui ainda pode ser que toques à campainha e me ofereças mais umas horas de vida. Não consigo deixar de sentir que dormir é como perder um bocadinho da vida.

- Ainda vais ficar acordado muito tempo?

Até conseguir ter os olhos abertos e não apagues a luz, que ainda pode ser que passe alguém.

sábado, 29 de maio de 2010

Avó Hortense

Matava as cobras com uma enxada e depois ia mostrar-mas, de sorriso matreiro a meter-me medo. Escolheu um homem, casou, teve filhos e depois ele partiu, sem avisar. Nem cheguei a conhecer o meu avô materno, lembro-me dela sempre sozinha com um brilho nos olhos ao ver os netos.

- Cada vez tás mais parecido com o teu avô...

Sentia-lhe a tristeza no olhar quando ela me dizia aquilo. Uma pessoa tem que se agarrar a qualquer coisa e talvez ela veja em nós um bocadinho do que perdeu tão cedo. Afinal não estava sozinha, nunca a deixámos estar.
Contava-me histórias de um admirador secreto que à noite virava um monstro qualquer e subia à laranjeira que ainda lá está para a espreitar e das bruxas que se juntavam no casal ali ao lado. Um dia o marido de uma queimou-lhe as pegadas e no dia a seguir foi descobri-la coxa, de pés queimados. Nunca mais me esqueço destas histórias.

- Vocês hoje têm tudo!

E eu a querer uma prancha nova e aquela bicicleta que vi na loja de BTT.

- No meu tempo uma sardinha tinha que dar para quatro pessoas...

E aposto que se lembrava do meu avô a beber vinho para ajudar o pão a ir para baixo. E eu com um prato cheio à frente, a queixar-me por ter que comer as couves enquanto as punha na borda do prato.
E as paredes que quando chegava o sol ela caiava, por obrigação ao amor que nunca perdeu. As paredes da casa que o meu avô ajudou a construir ainda lá estão, a assinalar de onde nós viemos, porque não somos só feitos de memórias.

- Agora já nem para trabalhar eu sirvo. Este corpo só anda aqui a estorvar...

E eu rio-me porque as pessoas realmente valiosas nunca têm noção do que valem para os outros. Uma alma santa, logo eu que não acredito em santos. Não lhe vejo ponta de maldade, nunca vi. Às vezes um protesto ou outro, mas afinal, como se sentirá uma pessoa quando perde a independência depois de velha?

- A minha casa é lá no cemitério, ao pé do teu avô.

Um misto de revolta e de compreensão, afinal que sei eu da saudade que ela sente do meu avô? Mas depois sinto-lhe tanto medo da morte... talvez hesite entre as saudades dos que ainda cá ficaram e a outra a que se calhar já se habituou.
Nós vamos aproveitar o que nos resta contigo, que a casa está lá guardada mas por enquanto fica mais um bocadinho, porque o que é bom não tem sempre que acabar cedo demais.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

O caos

Estou para aqui dentro do café que me tem servido de refúgio, mas parece que ainda sinto na pele a brisa que sopra neste cabo onde parece que estou destinado a voltar.
Há lugares e pessoas que parecem destinadas a deparar-se no nosso caminho.

- O meu amigo para a semana apresenta-se em Sines.

E a minha cara sem saber o que dizer. O que eu não pagava para ver a minha cara naquele momento.
É como quem ouve outro dizer que de um momento para o outro só pode ver a namorada ao fim de semana, com as horas e os minutos contados. Cada momento sagrado, mas sem se conseguir ser feliz descansado.
Não consigo deixar de sofrer por antecipação. Na semana antes do jogo do titulo, a vista a tremer e uma crise de caspa, mas ao menos aí passou depois do jogo, mas agora não. Acho que foram poucos os momentos em que não me senti sozinho neste mundo, mas aqui, apesar da presença constante dos meus pais, sinto um vazio que dificilmente os fins-de-semana em Lisboa compensarão. Não consigo deixar de exagerar os sentimentos.

- Se calhar vou para Moçambique!

E parece que do outro lado,

- Como é que vais se estás preso aqui?

Não vejo corda, nem corrente, nem suporte que me fixe aqui, mas realmente sinto-me preso a qualquer coisa.
Vivo numa ditadura de palavras que vagueiam dentro de mim, num caos confinado às paredes do meu corpo. Quem me conhece sabe que de vez em quando,

- Desaparece-me daqui!

Quando afinal quero que fiques. Às vezes deixo sair o que quero prender e quem me conhece mesmo bem, sabe que às vezes prendo o que quero libertar.
E as palavras num ruído caótico dentro de mim sem me deixarem ouvir nada à minha volta.

- Estás a ouvir?

- Não, não estava aqui desculpa...

Tenho uma avó que é um dos maiores mistérios que conheço. Vive sozinha em si própria e só fala o estritamente necessário, às vezes um suspiro. Imagino que esteja a pensar no amor que a deixou demasiado cedo. Podia ter ficado azeda, revoltada com tamanha injustiça que a separou do homem da vida dela. Ainda eu me queixo com um exemplo destes na minha vida.

- Ainda sinto a tua falta. Não me sais da cabeça...

E depois vejo a minha avó e a coisa melhora. E um suspiro meu, que também tenho direito. Todos temos direito a um suspiro de vez em quando para expulsar o mal cá de dentro.

- A suspirar? O que é que se passa?

- Nada... Não se pode suspirar? Preferes que grite?

- Não. Suspira lá à vontade!

Que em forma de suspiro elas não saem daqui e a ditadura continua sem que ninguém note o caos que passeia por dentro de mim.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

A certa altura

Lembro-me de quando era puto e vivia sem preocupações nem responsabilidades, preocupado apenas com os jogos que queria ganhar e com as miúdas que queria impressionar.

- Queres ser minha amiga?

Assim, sem rodeios nem receios de qualquer espécie.

- Queres ser meu amigo?

Quando o rapaz parecia capaz de chegar a casa depois da hora marcada, com arranhões nos braços e a roupa como se tivesse vindo da guerra.
Tínhamos um arbusto que servia de porta de entrada num mundo alternativo, de limões desviados na mercearia e doces comprados com o dinheiro dos avós. Guardávamos aquilo como um tesouro, protegido de outros arbustos também transformados num mundo dos pequenos que queriam ser grandes e maus. Miúda não entrava ali, que eu soubesse ao menos, porque nessas coisas nunca se sabe o que a paixão, mesmo infantil pode fazer. A paixão sempre esteve presente na minha vida, acho que não me lembro de muita coisa antes do meu primeiro feitiço sentimental.

- É uma moedinha para o santo António!

A lata que é preciso ter... Será que com a idade perdemos a lata?
Juntávamos os trocos numa garrafa de água cortada pela metade e aquilo dava para nos encher de pastilhas, rebuçados e coca-cola e ainda sobrava para mantimentos dos arbustos durante uns tempos.

- Queres ser minha namorada?

E andávamos para ali, de mão dada pela rua fora como dois tontos apaixonados, eu a esconder dos amigos, ela a fazer questão que a coisa se oficializasse, a apertar-me a mão e a fincar o pé. Sempre gostei de miúdas assim, que jogam de igual para igual.
No fim de semana andei a vasculhar álbuns de fotografias antigas, talvez daí estas recordações. Quase nunca sei o que vou escrever até escrever a primeira frase, prefiro assim, as coisas fluem melhor quando não são planeadas.
Hoje também tenho o meu mundo paralelo, na porta de entrada aqui da Afonso III, mas é tudo legal, pago renda, recebo um recibo e ainda me devolvem parte do dinheiro todos os anos. É tudo muito complicado, ao menos aqui dentro é tudo bem mais simples.

- Vais tar em casa à noite?

- Epá, não sei...

Sem explicações nem justificações, essa é a parte boa que se ganha com os anos. E a experiência, mas essa às vezes chateia, faz-nos pensar demais e às vezes em própria defesa, perdemos a oportunidade. Mas ganhamos outras, descobertas por entre um cortinado aberto ou uma porta encostada que nos alerta ao sopro de uma corrente de ar.
Acho que trinta e cinco anos é a melhor idade. O arbusto mal de mim se não o tiver, os doces e as guloseimas são diferentes e as miúdas acho que já não acham muita piada a essa tanga de querer ser amiga, mas não sei, a certa altura deixei de perguntar...

-

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Demora

A tristeza é uma cabra velha. Aparece como quem não quer a coisa e deixa-se ficar por ali, não liga a sinais nem a palavras e só vai embora à força das atitudes.
A felicidade, uma miúda gira que chega e parte num suspiro breve, que queremos que demore sempre mais.
Deixa-se estar ali a velha, com um espelho de superfície perfeita na mão, que despe todos os nossos defeitos ocultos, todos os ângulos mortos e todas as arestas falhadas. Num suspiro se instala sem que se vá no seguinte e mesmo que aquela miúda gira passe, ela fica, de espelho apontado e olhar mortiço. A velha tem chagas, que precisam de tratamento, a outra não fica assim, não gosta, nem nós queremos que ela apareça sequer. Uma de surpresa, com hora marcada ou daqui a uma semana a qualquer hora, sem que nos pergunte se pode vir, a outra cheia de timidez, fugindo ao que recusa enfrentar.
Acha-se boa demais.
Gira, mas snob o raio da miúda.
Uma cola-se na sola do sapato, a outra escorrega-nos por entre os dedos. Traz-nos as dúvidas e as inseguranças, descobre-nos os prós e os contras que preferíamos não saber, e ensina-nos a viver com ela de braços atados na corda bamba. A outra passa e sorri, mais umas vezes e já pisca o olho, até que um dia pára ali perto. Ao inicio ainda nos vemos a nós, despidos, inseguros na nossa nudez púdica a desviar o olhar, com medo que ela nos veja as fraquezas, que nos descubra os defeitos.
Até que um dia a olhamos nos olhos e no outro já lhe piscamos o olho, sorrimos e ela fica mais um pouco até partir. Talvez da próxima sejamos nós a procurá-la em vez de ficar ali à espera, à mercê do raio da velha e do seu espelho de superfície perfeita. Chegamos e sorrimos-lhe. Perguntamos o nome e dizemos o nosso num sorriso que dispensa espelhos, dizemos que é um prazer e é mesmo, sentir-lhe a pele das mãos, sentir-lhe o perfume da pele e descobrir um sorriso no olhar. E um vento há-de vir que sopra a velha dali para voltar com aviso, mas da próxima por menos tempo que eu sei, com hora marcada para partir mas ainda sem hora para voltar.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

De Sines

Já foi terra que deu muita e boa uva, mas hoje, parece que a parra cobre a cepa e não deixa a uva crescer.
E tudo fica na mesma, porque para podar não parece haver ninguém e os que dizem que o fazem, foram mal ensinados.
Mas não é de cepas nem de uvas que vive a nossa terra (sinto-a sempre mais minha quando estou com ela), é de mar e de peixe e do corpo de muitos.
Não sei se seria capaz de voltar a estar em Sines a tempo inteiro, pelo menos assim, com ela perdida e abandonada, refém do conformismo de alguns, presa pelo hábito de outros que lhe trazem tão pouca alegria. O sol brilha e ilumina-a e ela é sempre bonita, mesmo com as ruas moribundas e as encostas mal aparadas, mas são as pessoas que a fazem, são elas que lhe dão vida e ela vive tão pouco hoje em dia. Chega a dar dó um sitio assim tão mal acompanhado. Para os que querem ou podem é mais fácil sair e visitá-la de vez em quando, para os que ficam é mais fácil fechar os olhos e tomar como dela os defeitos de outros, no fundo, somos todos culpados.
Os capatazes que a regem, esses, vão de mal a pior. Antigamente vestiam-se de vermelho, contra tudo e contra todos, sem perceberem que contra ela também. Hoje um grupo de gente sem ideais, à mercê de um homem que vira para onde quer que o vento sopre, parecendo agora soprar para outros que de honra e de palavra nada parecem saber.
O presente nada de bom augura para o seu futuro, salvo raras excepções e pequenas pérolas que a destacam pontualmente das outras terras. Mas nada ganhamos com o pessimismo, por isso eu deixo-o para trás, porque escrevo numa dessas excepções, quem sabe uma pérola, sem saber o que fiz para merecer fazer parte dela. Vejo-a como um apeadeiro no qual já não passam comboios e que agora serve de palco aos que não têm voz e precisam de falar e ao que parece, até os seres mais inesperados a ela recorrem em altura de desespero. E ela aceita todos, de braços abertos e sorriso na cara, tal como a terra onde nasceu, erguida de frente para o mar, nas suas artérias sinuosas em que se perdeu, mas nas quais sei que se voltará a encontrar.

no "estação de sines" por Bruno Leal

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A ladeira

Às vezes tenho destas coisas. Lembro-me de alguma coisa que quero fazer e depois só descanso quando a faço mesmo, nem que seja sozinho, como ali, naquele sitio.
As pernas a parecerem pesar o dobro do que costumam pesar, de bicicleta ao lado naquela ladeira que parecia não terminar. Barulho, só o dos pássaros a cantar, se é que a isso se pode chamar barulho, por entre a minha respiração esforçada e os meus passos arrastados.
No conforto de um muro ali à beira da estrada, de costas assentes no branco da cal e pés cravados na areia batida, alguém falou comigo quando eu já com a cabeça noutro lado me preparava para seguir viagem

- Está tudo bem consigo jovem?

Que bem me sabe quando as pessoas me tratam por jovem ou menino. Do outro lado do muro um senhor de idade limpava a testa com as costas da mão esquerda que segurava a boina. Sempre gostei de boinas

- Bom dia! Sim tá tudo bem obrigado!

E um sorriso que me parecia sincero, mas não sei que já vejo mal ao longe

- Como o vi aí encostado há tanto tempo, pensei que estivesse mal disposto

- Pois... encostei-me para descansar, que esta subida parece que não acaba e dei por mim a admirar a vista e a pensar na vida. Mas tá tudo bem, já me ia fazer à estrada.

Na outra mão um saco branco que me parecia de adubo, que largou dentro de uma caleira já seca ao aproximar-se. Não parecia ter menos que 70 anos

- Eu sei que custa porque a vida inteira a subi também. Mas só até aqui, ou daqui até lá acima, nem sei se alguma vez a subi toda de uma vez só. Normalmente paro aqui um bocadinho... Nisso somos parecidos veja lá!

E uma gargalhada sentida que partilhámos os dois

- Viveu aqui a vida inteira?

Um silêncio e um olhar que se ausentou por instantes

- Sim, esta casa já era dos meus pais veja lá...

Achei estranho. Afinal tinha a ideia que antigamente se casava porque tinha de ser e que normalmente se saía de casa dos pais com a respectiva já semeada.

- Olhe eu é a primeira vez que aqui venho mas este sitio faz-me sentir bem, apesar do cansaço... Sou da cidade e sempre vivi convencido que para além daquilo nada interessava, mas agora com o passar dos anos já vejo o campo de outra maneira. Qualquer dia ainda me faço seu vizinho!

Com os olhos a brilhar

- Isso é que era grande coisa! Por aqui quase não há jovens. Há por ai 4 ou 5 crianças, mas assim que chegam à idade de trabalhar fogem daqui como o diabo foge da cruz! Quando andam na escola já os vemos pouco, de maneira que isto aqui é só velhos chatos durante o dia e à noite, dorme-se para apanhar o fresco da manhã.

- O senhor a mim não me parece chato nenhum. Eu gosto muito do sentido de humor dos velhos, acho que como já falaram e já disseram tanto, sabem sempre melhor do que nós o momento certo para falar. Como a oportunidade faz o ladrão, conseguem sempre roubar-me um sorriso, mesmo que escondido, quando o assunto é sério.

- Isso diz você que parece boa pessoa, mas nem todos pensam isso que eu sei. Mas olhe que é melhor seguir viagem que o sol já aperta. Se quiser encha aqui o cantil que a água sai fresquinha, ao menos isso.

E com isto virou costas e pegou na saca de adubo que eu já julgava esquecida. Se calhar com a idade o nosso horário biológico encurta as folgas e ele já sentisse que eu o estaria a distrair do essencial. Talvez já se tivesse distraído tantas vezes que agora tal lhe seria impossível.

- Obrigado mas ainda tenho o cantil cheio. O médico bem me diz para eu beber muita água, mas nem sempre apetece...
Mas é isso mesmo! Vou-me mas é fazer à estrada. Soube-me bem esta paragem aqui a meio da ladeira.

- Vá! Faça boa viagem de volta à cidade. Mas vai continuar a subir a ladeira?

- Normalmente acabo aquilo que começo. Depois vou à volta que eu almoço tarde!

Com a saca de adubo esquecida de novo, levanta a mão com que ajeitava a boina e num sorriso

- Faça boa viagem e até à próxima!

E eu com pena das palavras que acabaram por não ser ditas e com tanta curiosidade para descobrir as que ainda se dirão

- Até à próxima!

sexta-feira, 26 de março de 2010

O passado

Apetecia-me descobrir alguém de quem gostasse realmente, assim à primeira, sem dúvidas nem incertezas. Um olhar cúmplice de uma quase desconhecida, sem pequenos tiques que me afastem sem saber e que só percebo no dia seguinte, quando prefiro estar sozinho.
Estás preso ao passado e, eu a concordar com cada palavra e a inventar outras. Tens medo de arriscar e ouvi dizer que quem não arrisca não petisca.
Preso à imagem do meu avô, de boina ao sol, encostado à parede da casa que hoje vive sozinha num silêncio que me magoa. Às vezes passo lá, sem ninguém saber. Estaciono o carro e fico ali uns minutos a recordar como aquilo era e, acabo sempre por sentir que ele está ali comigo. Depois ainda segue comigo no carro, em silêncio, até que desaparece e eu sozinho de novo.
E o meu primeiro beijo a sério, naquelas escadas da praia numa noite fria de inverno, que usei como desculpa para os meus tremores que só pararam depois do terceiro e de um abraço. Acho que tremi de todas as vezes que beijei alguém de quem gostava mesmo pela primeira vez. Vi-a há uns anos atrás, tão diferente, o mesmo sorriso, a mesma voz, mas um olhar tão desconhecido que não me deixou reconhecê-la.
O dia em que fui para o hospital com uma tampa na garganta e o amor que senti da minha família que me acompanhou assustada. No meio de tanto pensamento fúnebre e dos tablóides póstumos que imaginei, que bom que foi sentir o medo deles em me perder.
A primeira prova que ganhei, em Montemor, numa piscina colorida que ainda hoje lá está. Agora passo lá de carro e parece que estou um bocadinho em casa, dentro dos muros que escondem a água em que depois desse dia não me lembro de ter nadado.
A primeira surfada, em São Torpes, com as barbatanas de caça submarina e a suntalon amarela a defenderem-me do medo que senti. Escondi-o de todos e ninguém reparou, mas o medo, esse eu não esqueço, estou preso a ele e acho que ele me defende.
Estás preso ao passado e, eu a pensar no primeiro dia sozinho em Lisboa e nas lágrimas que caíram quando me fui deitar naquela noite.
Aquela mão na minha perna, naquela estranha madrugada de natal em que o pai natal disfarçado de cúpido, a aproximou de mim para nunca mais sair.
Estou preso ao passado e tu estás presa a quê? A nada se calhar, que há pessoas que não querem sentir que se lembram das coisas que magoam.
É estranho tudo isto. Esqueço-me de tantas coisas e outras estão comigo a toda a hora. Não têm tempo nem espaço, apenas existem e não se esquecem. Logo tu a dizeres isso. Tu, de quem gostei não sei se à primeira, mas de certeza que à segunda, sem dúvidas nas certezas que me disseram que queria estar contigo no dia seguinte, sem pequenos nem grandes tiques, que me pudessem levar a querer estar sozinho amanhã.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O tempo

Há que tempos que não nado. Uma relação tão longa e hoje está assim, quase apagada pelo tempo que entretanto passou. Lembro-me tão bem do fim, naquela piscina de Loulé em que perdi pela primeira vez a minha prova para outro. O cansaço de tantos anos e a vinda para Lisboa afastaram-me de ti quando percebi que foi por egoísmo meu que durámos tanto. Egoísmo ou carência que precisava de ego cheio, as duas tão tenuemente ligadas e no entanto tão diferentes, uma ignorada, a outra escondida pela tua presença constante que me ia preenchendo os vazios sentimentais. Que a natação não eram só as vitórias e o respeito e admiração de alguns, eram os amigos, os amores, as viagens e as histórias que se haviam criado e que prometiam ainda mais. Estávamos ali todos os dias, às vezes de manhã e à noite, enfiados dentro de água com o som constante do bater de pés daqueles vinte ou trinta adolescentes, de hormonas felizmente acalmadas pelo cansaço dos quilómetros que nadávamos. Formávamos uma corrente dentro de água e, às vezes, para descansar, deixava-me ir sem fazer força, aproveitando o ciclo que se criava com o constante movimento da minha equipa. Ali estávamos num mundo à parte, só nosso, as regras de fora pouco contavam. O respeito era para ser conquistado e os queixinhas eram eternamente lembrados como bufos, incapazes de se defenderem sozinhos e, a pouco e pouco, excluídos. O medo confundia-se com o respeito e com a amizade de alguém que de repente, sem nada em troca, nos defendia de outros e nos aprovava o respeito que fazia tudo funcionar.
Aquele baloiço em Estremoz, aquela carta da miúda mais gira da outra equipa, aquele beijo nas escadas da praia, as mãos entrelaçadas no escuro da carrinha em viagens que eu não queria que terminassem. Ainda hoje as viagens de volta me parecem sempre mais curtas que as de ida, ainda hoje sinto o cheiro a cloro de vez em quando. Lá na piscina do ginásio não usam cloro, devem meter outro produto qualquer e aquilo nem me parece uma piscina, não cheira, não sabe e não tenho a minha equipa a fazer-me deslizar na corrente que criámos. Alguns não os vejo há anos, desapareceram, de vez em quando alguém que os vê, às vezes um reencontro inesperado, mas doze anos depois tudo tão diferente, os sentimentos vazios, a estranheza de uma pessoa que já não sabemos se é a mesma sequer, sem saber se nós próprios somos os mesmos e, um virar de costas com promessas de um jantar, de um reencontro que preferimos idealizar que realizar, talvez com medo de descobrir que nos tornámos todos tão diferentes.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Isto da Terra

Já cansa esta dúvida que paira sobre nós humanos.
Se os nossos actos passados e presentes, terão ou não influência nas alterações climáticas que verificamos ano após ano, julgo que ninguém saberá. Apenas suspeitas e meias certezas que nos indicam prenúncios nos quais não queremos acreditar, que recusamos lascivamente a cada novo capricho, a cada passeio de carro sem destino, a cada luz por apagar, a cada levantar de ombros resignado. Não, não sou utópico, nem tão pouco quero ser, não quero andar menos de carro, nem tomar banhos mais curtos, mas convém que falemos sobre isto.
Afinal, quantas relações terão acabado com a negação de um, perante os mais ou menos evidentes sinais do outro?
Valerá a pena dedicarmos boa parte dos nossos esforços, no sentido de descobrir os porquês desta aparente alteração da habitual quietude do nosso Planeta. O degelo dos pólos e a consequente subida do nível do mar, que logicamente provoca uma maior pressão sobre o solo, poderá originar sismos e erupções mais frequentes? E que efeito terá tudo isto nas correntes oceânicas e na alteração do clima a que nos habituámos até aqui, que tomámos por garantido, assim, de forma tão sobranceira?
Felizmente, mesmo que a conta gotas, assistimos a um cada vez maior desenvolvimento de novas energias e de novas esperanças, que poderão salvar um casamento, que até aqui, imaginávamos harmonioso. Não sei se teremos ouvido com atenção o outro lado da barricada, que as bombas a pouco e pouco afastaram e que nos desabituámos de respeitar, pensando que à falta de queixas, tudo estaria bem. Durante séculos, talvez milénios, sempre atentos e respeitadores de cada sinal, de cada palavra, de cada gesto que a pouco e pouco, fomos menosprezando, confundindo talvez o eu que nós somos, com o nós que deixámos de merecer. Será tarde de mais, ou tudo não passará de uma pequena crise, não interessa, talvez não passe mesmo de um destino já traçado, que nos impede de continuarmos o que começámos sem nos darmos conta, sobrevivendo até aqui. Mas não vale a pena ser dramático que as coisas não estão para isso, a acabar, acabemos com dignidade. Eu não quero acreditar, gosto demasiado da vida para conseguir viver com essa dúvida permanente, mas, às vezes lá vem ela a tapar-me o sol que me está a saber tão bem e a fazer-me tremer num arrepio de nível 8 na escala de richter.

sábado, 6 de março de 2010

Memórias

Convenhamos, o meu problema com as mulheres já vem de trás. É coisa de escola primária e da minha primeira paixão. Ela era morena e tinha um corte de cabelo geométrico, com franja, ainda hoje gosto disso, chamava-se Sónia, mas já não me lembro da cara dela. Apenas uns ligeiros traços da última vez que a vi nas escadas do prédio, uns anos depois de me ter mudado.
Olá! Com um sorriso a acompanhar e eu,
Olá! seco e de voz grave a fazer-me homem, incapaz de lhe dizer que, de vez em quando, no recreio em Sines, sentia a falta dela.
Nunca mais a vi desde esse dia. Às vezes lembro-me daquela tarde que andei a brincar no quarto dela e acabámos de mão dada. De vez em quando, no intervalo da escola a saltar à corda de rabo de cavalo e eu a ver, enquanto os meus amigos me chamavam para um jogo qualquer.
Quero lá saber de jogos!
E virava costas para brincar com eles, a ver se esquecia o jogo que mais temia, distraindo-me com a adrenalina de quem joga futebol de calções, num piso de alcatrão e gravilha quando se tem 6 anos. Mas nem isso me tornava imune àquela sensação incómoda, que ainda hoje sinto quando me lembro de ti. Depois percebi que não eras tu, era eu, já mais tarde, quando senti o mesmo pela Sofia naquele balouço de Estremoz.
Não é de hoje, já vem de trás este meu problema com as mulheres, com certas mulheres apenas, ao menos isso. De vez em quando o nó no estômago, as defesas que se criam a recomendarem-me a escolha criteriosa das palavras a libertar, a ver se escondo o mau feitio que me deu a alcunha, se me protejo a mim, daquele sorriso, daquele olhar, daquele ser. Hoje já não, não sei o que se passou, mas algo terá sido por certo, porque hoje sou igual para todos, nem mais nem menos, talvez mais alguns sorrisos quando estou contigo, mas isso, é natural. Talvez tenha sido a imagem daquele meu amigo, ou ex-amigo, de duas caras, uma de garanhão com os amigos, outra de puritano com as amigas, que eu estranhamente não reconhecia, que me fez jogar assim, sem truques. Posso perder mais vezes, é certo, mas ao menos vivo de consciência tranquila e com a certeza de que quem gosta de mim, não gosta de outro qualquer que não existe.
De ano a ano, passo pelo prédio onde morava quando me apaixonei por ti, procuro uma miúda morena de corte de cabelo geométrico enquanto dou a volta ao prédio, lembro-me de quando me escondia naquelas varandas do rés-do-chão quando os ciganos vinham, mas de ti nem um sinal. Entro no carro, ligo o rádio e sigo viagem e, a tua memória desaparece tão rápido como surgiu, até outro dia, até outra hora qualquer que nunca sei quando é. Pode ser que nessa altura tenha alguém ao meu lado que valha a pena ter, da última vez que isso me aconteceu não virei e não passaste apenas de um pensamento efémero e volátil na minha mente, logo afastado por uma mão na perna e um sorriso cansado, talvez um beijo. Mas a mim, não a outro qualquer que não existe.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A casa


Sentado na mesa redonda da sala que tomei como minha, há 2 anos e pouco mais de um mês, consigo ver tudo para a frente e quase tudo para trás.
Nos primeiros dias, eu sozinho, esmagado entre as 4 paredes deste rectângulo, que agora me abraça com experiências e memórias de dois anos marcantes na minha vida. Lembro-me da primeira noite que aqui dormi. Fez-me bem a solidão nessa altura, ainda hoje me faz. Por motivos diferentes é verdade, porque afinal de contas, há alturas em que apenas conseguimos lamber as feridas, alturas breves, esperamos todos. A minha, resolveu-se por insistência e, talvez por reconhecimento à minha audácia, fiz uma amiga. E tão bom que é ter amigos!
Por aqui têm passado muitos, nesta sala de alcatifa vermelha e escadas em caracol para o sótão do xico, que às vezes é kiko, em conversas intermináveis e confissões inesperadas, tantas vezes desconfortavelmente doces, seguidas de sorrisos e palavras apaziguadoras de qualquer embaraço. Não gostei dela quando a vi pela primeira vez, foi um daqueles casos em que primeiro se estranha e depois se entranha, tudo assim, entre amigos, em casa. Pelo meio tantas histórias, não sei se sou eu que as invento ou se elas aparecem por vontade própria, mas tantas, algumas em memórias dispersas, outras bem nítidas e eternas em mim. Tenho 30 anos, vou fazer 31 e, afinal o que é isto da idade? Eu continuo a sentir-me uma criança neste corpo de homem, quero ir para a rua brincar com os amigos, jogar ao bate-pé e à bota, esconder-me ao som da contagem decrescente de um amigo, talvez uma amiga no quarto escuro. Vou levar para a cova o arrependimento de não ter iniciado mais quartos escuros na infância, isso sei que vou. Mas daqui vejo tudo para a frente, já para trás, talvez haja coisas que possa apagar...
Este é um daqueles textos que sabe bem escrever, ao som de Ella Fitzgerald e de Louis Armstrong, de frente para a sala que me acolhe a mim todos os dias, que nos acolhe a todos aqui na Afonso III. O pior é depois, que afinal é para a frente que não vejo tudo, porque para trás afinal ainda consigo e vocês estão cá todos comigo. De vez em quando eu sozinho, de phones nos ouvidos a escrever estas coisas e vocês por aqui sem que eu vos veja, sob esta alcatifa encarnada a encastrar as escadas em caracol que dão para o sotão do xico, que às vezes é kiko. De vez em quando uma música, uma frase que só nós entendemos, aqui, na nossa casa da Afonso III.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Gosto muito de ti!

Gosto muito de ti.
E esta frase repetidamente escondida dentro de mim. Talvez pelos olhos tu a sejas capaz de ouvir, mas mais ninguém de certeza. Falemos de mim desta vez, que já chega de falar de ti e dos outros. Já não basta encarnar a pele dos outros e escrever por aí. Falemos de mim que assim talvez consiga ajudar quem eu quero. Desta vez, só desta vez, não vou ser egoísta e vou abrir-me para te fechar da dor que julgas ser pior do que aquilo que ela realmente é.
Disseste-me que ias falar com ele porque uma mulher não devia afastar dois amigos. E eu, que procuro em quase tudo algo mágico, concordei contigo. Falar faz bem quando se tem coragem para dizer tudo, por isso não guardes nada para ti e fala como a pessoa pura que és. Eu não, eu sou tudo menos puro e conheço poucos como tu e também por isso gosto de ti, como te escrevi naquela noite em que senti que precisavas de o saber. Nunca gostei de dar conselhos sem que mos peçam, talvez por achar que apenas nós próprios temos todos os dados que nos permitem resolver o problema que somos nós, mas isso sou eu, que guardo coisas só para mim, que sofro sozinho e tomo por minhas coisas que são de outros também. Tu não és assim que eu sei, tu pedes-me conselhos porque não tens nada a esconder, porque para ti eu posso de alguma forma ajudar-te a entender a merda de sentimentos em que por vezes mergulhamos. Felizmente não os pedes só a mim, felizmente não te faltam amigos como te faltam outras coisas, mas pelos outros não posso falar, apenas por mim e mais ninguém. Quando te disse para guardares para ti aquilo que sentes, disse-o por achar que talvez não fosses capaz de o fazer, por achar que serás sempre como um irmão mais novo que nunca tive e a quem eu tenho de dar orientações, esperando continuar útil a ponto de me obrigares a segurar-te pelos ombros e a rodar-te no caminho certo, que nem eu sei ao certo qual é. Mas é isso mesmo que deves fazer, sofrer para ti e partilhar apenas com aqueles que sabes que gostam de ti, porque as nossas fraquezas já nos dificultam tanto a vida que não vale a pena desconhecidos saberem delas. Comigo sempre resultou tentar guardar apenas as coisas boas e esquecer as más, tentar mostrar que estou bem, mesmo sabendo que todos os meus amigos sentiam o contrário. Talvez contigo não resulte, afinal somos tão diferentes um do outro, tu tão puro e transparente, e eu tão complicado e tão difícil de entender. Talvez nada do que eu diga resulte contigo, como resulta comigo, mas o que te disse é o que sinto, sem nada escondido, sem nada na manga para jogar no fim. Fala com o teu amigo, guarda a dor que possas sentir para quem gosta de ti, continua puro para quem te merece assim e, um dia vais perceber que alguém que te ama, nunca iria permitir que perdesses um amigo por causa dela, porque aí seriam os dois a perder. Ah! E só mais uma coisa,
gosto muito de ti!

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Não sei por onde começar. Se pela ponta, se pelo fim, se pelo meio a arrepiar caminho, se devagar, esperando que digiras suavemente cada palavra, cada gesto, cada olhar. Queria assim, devagarinho, mas sei que vai ser rápida e bruscamente que vou deixar escapar o que te quero dizer, tal libertação heróica da verdade, das teias da mentira e do medo. Olha, traz uma faca, algo que corte bem que isso pode ser preciso. Se te apetece ajudar-me e depois não consegues, vais-te sentir mal e isso eu não quero, por isso traz algo que corte que eu prometo que não tenho medo. No outro dia, eu sei, não te pedi nada disto porque pensei que tinha o canivete que ganhei aqui no Vitor, mas afinal perdi-o sem saber como, sem saber onde, ainda sentia o peso dele no meu bolso, mas quando lá pus a mão, à tua frente sem que reparasses, já lá não estava. Talvez acabe por salvar outro, pensei eu na altura. Agora não levo nada para não haver surpresas, vou de mãos abertas e logo se vê o que acontece. Sempre gostei das coisas assim e por muito que inconscientemente crie expectativas, espero sempre que aconteça algo diferente daquilo que idealizo. Sempre fui fascinado por coisas inesperadas, atípicas, que nos fazem rever todo o nosso comportamento e muitos dos nossos objectivos e expectativas. Mais vale esperar para ver como isto corre, talvez eu ache a ponta e resolva dizer a verdade, assim, devagar, para que  possas entender aquilo que eu sei e, aquilo que nem eu sei. E não tragas a faca afinal, vem como eu, de mãos abertas e sem medo de me ouvir.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Deixem-nos assim

Um dia conto-vos toda a verdade.
Até lá vou guardá-la comigo, escondida no meu casaco, debaixo da almofada, no porta-bagagem do carro, no meu pensamento, nos meus olhos sempre que me sinto a hesitar.
Nem me apetece falar da verdade, talvez por isso escreva, não quero saber disso, mintam-me à vontade que assim sou mais feliz. Deixem-me ser um leigo, desprovido de qualquer realismo sofrível, imune a qualquer putrefacto odor de mais uma dessas histórias. Guardo-a só para mim, porque não o fazem também vocês?
Deixem-nos assim como estamos, sem mais pormenores, sem mais histórias mal contadas, ou meio contadas, em mantas de retalhos que se revelam quase sempre piores do que a anterior de que tanto nos queixávamos.
Esqueçam de uma vez por todas que existimos que nós vamos tentar fazer o mesmo, eu, já o faço e não pretendo voltar atrás na minha decisão. Guardem essas coisas para vocês e contem-nas uns aos outros, como as crianças fazem em relação às namoradas que vão coleccionando em forma de fotografias num placard de cortiça na parede do quarto. Guardem as escutas, as censuras, as demissões, as nomeações, as sanções e deixem-nos viver na escuridão da ignorância, mais vale assim. A ignorância é felicidade, suponho que já terão ouvido esta, mas agora nem isso podemos ser que vocês não deixam, que nós não nos deixamos.
E eu aqui, sem saber em quem acreditar e já sem acreditar em ninguém, sem referências, sem exemplos a seguir, perdido no mar turbulento da minha mente, por minha conta e risco neste mundo de mentiras que são verdades, de verdades que não passam de um punhado de falsidades. Resta-me a mim e a amizade e o amor dos amigos e da família e, talvez uma ou outra alma caridosa, quem sabe um exemplo, uma referência de que tanto precisamos para seguir em frente sem que antes tenhamos que recuar drasticamente.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Até Sábado!

Por estes dias o meu irmão está na Cidade do Cabo e, ao que parece, tu estás no céu, porque hoje quando saí de casa de manhã, apesar do vento gelado que se fazia sentir na Afonso III, senti-te a aquecer-me a cara. Falei com ele há uma hora, andava num barco com o fundo transparente, imagino que a ver aquilo que sempre esteve habituado a ver, mas que ali, naquela ponta do mundo, terá outro significado. Quando eu lá for, vou encarnar por minutos a pele de um marinheiro luso, à espera de encontrar o fim do mundo numa catarata sem fim, de peito aberto, levando comigo chineses, ingleses e japoneses sempre prontos a registar fotograficamente esses momentos finais, em que juntos, descobríamos finalmente o que havia para lá do horizonte longínquo. Mas tu não faças isso, vê lá mas é se voltas são e salvo.
E tu? Tu só podes estar no céu, porque aqui não te vejo e a lua cheia revela, como tu tanto gostas, uma cor diferente nas pessoas, daquelas que só se observa em dias assim, quando pareces sair daqui e ir lá para cima. Aqui em baixo está frio, aí não? Há a sauna, o banho turco, o aquecimento do carro, os banhos quentes matinais, o pijama no aquecedor a óleo, mas nada sabe tão bem como o teu calor  na minha cara.
Parece que foste tu de manhã e agora à noite outra vez, num brilho de uma lua quase cheia, que nos espera no fim de semana que aí vem. Depois há o calor do escuro do Lux, num sábado à noite com tantos sorrisos amigos por perto. De vez em quando fujo e desapareço. Sabe sempre melhor chegar, quando se sabe que se vai partir outra vez.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

De mal

Apesar de achar que tenho tudo, ou quase tudo, porque tudo seria limitador de toda e qualquer ambição, não consigo deixar de ter dias como o de ontem, em que me sinto mal com a vida e com o mundo e, me fecho em casa depois do trabalho, de modo a evitar qualquer contacto com o exterior. Já desisti de pensar nos porquês destes dias negros se instalarem e, por isso, apenas me limito a esperar que o sono chegue, por norma tarde, para acordar no outro dia sem memória do anterior. Escusado será dizer que isso nunca acontece, os dias passados ficam e não se esquecem e, no fundo, todos eles juntos somos nós. Cada um de nós a sucessão de dias passados e que esquecidos ou não, nos vão enchendo de esperanças, medos, ambições e desejos que se revelam a cada escolha que fazemos, em cada avanço e em cada recuo.
Já desisti de me atormentar sobre os motivos de tão frequentes crises existenciais e fragilidades emocionais, vivo-as e não as escondo de ninguém, até porque não as consigo esconder de mim.
Nunca analisei a frequência ou período destes dias, acho que serão apenas fruto da minha veia masoquista, que acredita que a felicidade não traz sabedoria, que a alegria não traz conhecimento interior, que a dor e a angústia serão a forma mais fácil de crescermos e nos tornarmos por isso mais fortes e mais capazes de vermos a magia, dos momentos de pura felicidade que nos surgem tantas vezes.
Do outro lado do oceano, nos dias que correm, seria difícil explicar isto a quem sobrevive dos restos do nada que tinha, com a dor dos que perdeu, com a fome, a sede e o medo que ali se instalou naquele destino paradisíaco, transformado agora, por capricho ou necessidade da natureza, num quadro pintado de horrores que as próprias imagens que nos chegam, se revelam incapazes de transmitir.
E eu aqui, de mal com o mundo, quando o mundo parece estar de bem comigo...

sábado, 16 de janeiro de 2010

Olá como estás?

Olhei para a fachada como que a querer adivinhar o que se passava por detrás dela. A Rua estava deserta, consequência não só das horas tardias, mas também devido à chuva que tem caído incessantemente durante as últimas semanas. Têm sido dias difíceis, tais como o tempo...
Perguntei a mim mesmo o que estava alí a fazer, mas não fui capaz de encontrar uma resposta racional. Estava alí e pronto... foi um impulso.
Olá como estás? Estou a responder ao teu telefonema de ontem... apenas hoje pude retribuir... O que tens feito? E o trabalho, como tem corrido?
Embora esteja bem, existem dias em que tenho vontade de saber de ti, não por curiosidade ou outro qualquer interesse superficial, mas porque na realidade me preocupo a sério, e porque gosto muito de ti, não do mesmo modo que gostei no passado e o qual talvez pretendesses que fosse, mas tenho a certeza que de um modo muito mais puro e sincero. Quero muito que estejas bem, que te sintas muito especial e que a vida te sorria, e que tu em resposta mostres esse teu sorriso lindo que melhor do que ninguém sabes fazer.
O que me faz estar aqui a olhar para a fachada, talvez seja o facto de tentar perceber o que correu mal, o que nos fez afastar e acabar com a ligação que nos uniu durante tanto tempo. Mas tal como o tempo as minhas ideias estão nubladas e não consigo alhear-me do lado emocional que me impede de analisar a situação claramente para poder esmiuçar o turbilhão de pensamentos que me ocorrem. Apenas sei que tu és claramente o meu maior fracasso...
Olá como estás? O que tens feito? E o trabalho como tem corrido? Vou continuar a ter vontade de te perguntar... não sei se vais continuar a querer responder-me, mas uma coisa te garanto, embora o tempo nos vá afastando cada vez mais a ponto de termos cada vez menos em comum, quero que saibas que o teu lugar e a importância que tiveste e tens na minha vida ninguém poderá alguma vez apagar...
...Espero que estejas muito bem...

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Até logo!

Foi bom o nosso reencontro não foi? Dentro de água, num final de tarde de sábado, sem vento, com o sol a por-se nas tuas costas e um pico triangular a quebrar no "pico louco". Já te tinha ido visitar na 5ª feira à noite, mas, admito, prestei mais atenção à companhia do que a ti, afinal estavas demasiado longe, numa maré vazia que nos afastava e um vento frio que me desencorajou a aproximar-me. Fiquei a olhar-te cá de fora, descobrindo-te entre os silêncios das palavras, na espuma branca das ondas, que assinalava a tua presença naquela noite de quarto minguante.
Contigo as mesmas caras de há tantos anos, já não me lembrava que as caras das pessoas ficam diferentes dentro de água com o fato vestido, os sorrisos, esses, são iguais. Lembras-me tanta coisa, a primeira vez, quando me fiz à esquerda do molhe com barbatanas fluorescentes, uma suntalon amarela e uma licra gota d´água tinha eu uns 12 anos, as viagens de bicicleta com o meu amigo João Paulo, de saco ao ombro a caminho da costa do norte e de São Torpes e depois com a minha DT, viagens atribuladas no jeep do cerruti, no seat marbella do Costa, dentes partidos, cara esfolada, tantos sustos, tantos gritos de prazer, sair da água já de noite com os faróis dos carros a iluminar-nos o caminho enquanto vestíamos as roupas velhas que levávamos para a praia. Porque nessa altura não havia vaidades no surf, o importante era chegar e surfar, sem artifícios, sem modas e sem elitismos como hoje há. Afastei-me de ti em parte também por isso, mas isso é outra história, o que interessa afinal somos nós, devia ter percebido isso mais cedo.
Agora, aqui estou eu, impossibilitado de estar contigo durante a semana, dou por mim a imaginar-me dentro de água, a escolher o momento certo para o movimento certo, na nossa imaginação tudo é mais simples eu sei, mas mesmo assim não foi mau o meu regresso pois não?
Não tenciono escrever-te mais, afinal de contas nunca me respondes. Eu sei que já muitas palavras te foram escritas, mas acho que nunca lhes deste muita importância, foste sempre mais de actos do que de palavras e é nisso que vai residir a nossa relação de hoje em diante.
Até logo meu amigo!

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

As coisas da vida podem sempre ser mudadas a tempo



Esta tenho de vos contar. Aconteceu-me no outro dia enquanto te ouvia falar, ali, junto ao rio numa manhã fria de inverno, que estreava um novo ano. Passeei sozinho já de dia junto ao rio até se me acabar terreno seguro para caminhar, de frente para o mar, ao lado do Tejo, que lembro-me, corria naquela zona para montante, como que desejando ficar por ali, imagino que tentando contrariar a inevitabilidade de se vir a perder no teu imenso mar ali tão perto. Disseste-me quase nada, na altura nem percebi o que querias dizer. Soprou um vento gelado que me assobiou junto ao ouvido e tu desapareceste. Aterrou uma gaivota numa das estruturas aparentemente ali abandonadas e por ali ficou, estática durante alguns segundos, eu, olhei a ponte e quando reparei ja ela estava mais próxima, olhou para mim quando eu a olhei e quando observei novamente o rio, senti que ela também. Numa cidade como Lisboa e ali estava eu, a sentir-me em plena comunhão com a natureza, lado a lado como iguais, dois seres tão diferentes. Pensei, amanhã vou surfar, mas não fui, inevitáveis consequências de uma noite de excessos. Depois uma indigestão de camarões que comi alarvemente ocupou-me o fim-de-semana que restava, agora é trabalho durante o dia e com isto ainda não te fui ver de perto. Fica prometido que no sábado te vou visitar em Sines, isto se resistir amanhã ao teu apelo, pode ser que arranje quem me faça companhia e apareça ai para te dizer olá de sorriso rasgado quando já a noite for alta.
Tenho andado afastado de ti, mas o que me disseste naquela manhã fria e que eu só percebi já mais à noite, é-me impossível de ignorar.
Sinto a tua falta, enquanto o vento me soprava ao ouvido e a gaivota chegava a avisar-me que não estamos bem assim. Ainda me custa a acreditar, mas na minha inocência resolvi aceitar a falta que te faço, afinal de contas também tenho sentido a tua ausência. A culpa é minha, eu sei, fui eu que me afastei sem motivo aparente. Não te respondi por causa daquele vento frio, mas quando te vir vou dizer-te, que também sinto a tua falta. Mas não digas nada, desculpa-me em silêncio e vamos ser felizes como antigamente.