sábado, 6 de março de 2010

Memórias

Convenhamos, o meu problema com as mulheres já vem de trás. É coisa de escola primária e da minha primeira paixão. Ela era morena e tinha um corte de cabelo geométrico, com franja, ainda hoje gosto disso, chamava-se Sónia, mas já não me lembro da cara dela. Apenas uns ligeiros traços da última vez que a vi nas escadas do prédio, uns anos depois de me ter mudado.
Olá! Com um sorriso a acompanhar e eu,
Olá! seco e de voz grave a fazer-me homem, incapaz de lhe dizer que, de vez em quando, no recreio em Sines, sentia a falta dela.
Nunca mais a vi desde esse dia. Às vezes lembro-me daquela tarde que andei a brincar no quarto dela e acabámos de mão dada. De vez em quando, no intervalo da escola a saltar à corda de rabo de cavalo e eu a ver, enquanto os meus amigos me chamavam para um jogo qualquer.
Quero lá saber de jogos!
E virava costas para brincar com eles, a ver se esquecia o jogo que mais temia, distraindo-me com a adrenalina de quem joga futebol de calções, num piso de alcatrão e gravilha quando se tem 6 anos. Mas nem isso me tornava imune àquela sensação incómoda, que ainda hoje sinto quando me lembro de ti. Depois percebi que não eras tu, era eu, já mais tarde, quando senti o mesmo pela Sofia naquele balouço de Estremoz.
Não é de hoje, já vem de trás este meu problema com as mulheres, com certas mulheres apenas, ao menos isso. De vez em quando o nó no estômago, as defesas que se criam a recomendarem-me a escolha criteriosa das palavras a libertar, a ver se escondo o mau feitio que me deu a alcunha, se me protejo a mim, daquele sorriso, daquele olhar, daquele ser. Hoje já não, não sei o que se passou, mas algo terá sido por certo, porque hoje sou igual para todos, nem mais nem menos, talvez mais alguns sorrisos quando estou contigo, mas isso, é natural. Talvez tenha sido a imagem daquele meu amigo, ou ex-amigo, de duas caras, uma de garanhão com os amigos, outra de puritano com as amigas, que eu estranhamente não reconhecia, que me fez jogar assim, sem truques. Posso perder mais vezes, é certo, mas ao menos vivo de consciência tranquila e com a certeza de que quem gosta de mim, não gosta de outro qualquer que não existe.
De ano a ano, passo pelo prédio onde morava quando me apaixonei por ti, procuro uma miúda morena de corte de cabelo geométrico enquanto dou a volta ao prédio, lembro-me de quando me escondia naquelas varandas do rés-do-chão quando os ciganos vinham, mas de ti nem um sinal. Entro no carro, ligo o rádio e sigo viagem e, a tua memória desaparece tão rápido como surgiu, até outro dia, até outra hora qualquer que nunca sei quando é. Pode ser que nessa altura tenha alguém ao meu lado que valha a pena ter, da última vez que isso me aconteceu não virei e não passaste apenas de um pensamento efémero e volátil na minha mente, logo afastado por uma mão na perna e um sorriso cansado, talvez um beijo. Mas a mim, não a outro qualquer que não existe.

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