sexta-feira, 27 de maio de 2011

Origens

Às vezes um raio de luz que nos aquece, um vento forte que nos abraça, um pingo de chuva que nos molha e nos desperta. Às vezes um salpico do mar, o cheiro a terra molhada e os pés sujos no chão que nos diz de onde viemos.

- Vamos jogar à bola para o pinhal?

Hoje já não há pinheiros, só uma casa no canto onde outrora havia a clareira com as medidas oficiais de qualquer campo imaginário. À volta, um descampado que se estende até ao ribeiro lá em baixo que seca todos os verões. Os tempos mudam, mas as vontades são quase sempre as mesmas, transfiguradas por mais ou menos acessórios que naufragam perdidos, nos sonhos que vamos tendo. Apanhávamos caracóis e assávamos num tacho com o fundo furado quando chegava o calor, regávamos laranjeiras de pés descalços, ajudávamos na vindima por entre abelhas e vespas, e essas coisas ficaram gravadas numa folha que resiste às piores tempestades que vamos encontrando.

- Para o ano vamos viver para Sines!

Sines? Onde é que isso fica?

- Fica no sul, junto ao mar.

E uma rua em calçada que desce para o azul da praia, por entre 2 casas que nos estreitam o olhar. E eu de lancheira na mão junto ao portão da escola, a aprender a viver com a tristeza da memória dos amigos que deixei, dos carrinhos que fazíamos para descer a rampa dos prédios, das varandas que eram abrigos contra os ciganos, dos arbustos onde guardávamos os rebuçados e as pastilhas elásticas que íamos conquistando e de um rio, que rasgava de azul a lezíria numa janela qualquer.

- Vamos andar de bicicleta logo à tarde?

Descobrir um novo mundo numa terra nova e refazer um bocadinho do nosso, peça a peça,como quem cola os continentes todos numa peça só. Descobrir amigos que são irmãos e aprender a viver num outro sítio. Descobrir o mar, vencer o medo de um susto e nadar cada vez melhor, para não ter medo de nenhuma corrente que me queira levar para outro lado, para outro sitio de onde eu nunca serei.

- Quero ir para a praia!

E gritar "pipeline!!!" enquanto desço a esquerda do molhe, como nos filmes de bodyboard que víamos em casa do João ou de mãos dadas com a miúda mais gira que eu conhecia, numa carrinha escura que voltava de uma prova de natação. E passei a ser de Sines num pôr do sol dentro de água, numa camisola branca com Sines escrito no peito, a rir com os amigos no largo do castelo, num primeiro beijo tremido numas escadas viradas para o mar.

- Já não te via aos anos mano!

Amigos que deixamos de ver mas que vivem escondidos dentro de nós, que as vidas separam-se e os nós desfazem-se mas ficam marcados, vincados, ao pé de outros novos que se vão criando. Como rectas coincidentes num certo ponto, repetidamente coincidentes, que nos aproximam de algumas pessoas e nos afastam de outras.

- É o destino!

Tudo tem de ter um nome para o que não sabemos explicar, mesmo que seja apenas isso, um nome sem mais nada, sem valor nem sabor. E aprendemos que na vida vale tudo e que temos que ser nós a criar as nossas regras, a saber o que não queremos mesmo que não saibamos o que queremos, que isto da vida é complicado, por isso, porque não simplificar?

- Vamos lá?

- Bora!

Jogar à bola para uma clareira num pinhal, dançar numa festa junto ao rio, dar um beijo numas escadas viradas para o mar, dar-te a mão numa carrinha escura, sacar um tubo cristalino que num segundo dura a vida inteira e um olá envergonhado... Como quando duas pessoas se estranham por descobrirem que afinal são 2 rectas coincidentes num ponto, mas não saberem como será o amanhã.