quinta-feira, 17 de junho de 2010

O sono

- Não apagues a luz do quarto!

- Eu não apago. E estou a passar a ferro aqui no corredor.

Depois de me dar um beijo de boa noite. Aposto que só ficava até eu adormecer, que de vez em quando senti-a a espreitar-me para ver se eu já dormia.
Sempre vivi com os meus demónios, nessa altura eles eram monstros, metade humanos conhecidos, metade animais, cavalos, lobos, burros, porcos, um jardim zoológico de aberrações a atormentarem-me até que o sono chegasse e me levasse com ele para parte incerta. Havia dias piores que outros, como hoje afinal, às vezes ela apagava a luz, encostava a porta e eu não dizia nada e ficava ali, tapado com as mantas, imóvel, para que nada nem ninguém sentisse a minha presença.

- Eu sei que tu lutas contra o teu lado negro!

Há frases que quando são ditas me ficam a ecoar durante algum tempo. Uma frase que só um amigo sabe dizer, uma resposta inesperada, uma expressão ouvida pela primeira vez.
Hoje já não são monstros os meus demónios, são mais ideias e sentimentos, resquícios da infância mimada e rebelde.

- Isto é obra do Bruno!

Nunca era grande obra, um copo partido escondido a um canto, uma garrafa de azeite partida, qualquer coisa estragada.

- Mas porque é que hei-de ser eu e não o Zé Carlos?

Nem valia a pena responder, que eu já sabia a resposta e até gostava dela.
Mas os demónios não se escondem assim e acho que escondê-los seria esconder-me a mim também e isso eu não quero.
Hoje já não são monstros, são outras coisas, mas aparecem quase sempre à noite, quando estou sozinho ou quando me deito sem sono. Habituei-me a deitar-me quando já não suporto o sono, ou a adormecer no sofá. Lavo os dentes com antecedência e ponho-me a ver televisão ou a passear pela internet, como que a dizer, ainda cá estou, não se esqueçam de mim se cá vierem. Se calhar o medo dos monstros fez-me perder o prazer de dormir, ou isso ou o outro medo, o de desperdiçar parte da vida a dormir e perder-te quando ainda me falta encontrar tanta coisa.
Se calhar é melhor não apagar a luz, que assim se tu passares aqui ainda pode ser que toques à campainha e me ofereças mais umas horas de vida. Não consigo deixar de sentir que dormir é como perder um bocadinho da vida.

- Ainda vais ficar acordado muito tempo?

Até conseguir ter os olhos abertos e não apagues a luz, que ainda pode ser que passe alguém.

1 comentário:

Borboleta com Asas disse...

É na noite que os fantasmas voltam sim...
é na noite que sentimos a sua presença,não quer dizer que durante o dia nos deixem, mas... estão adormecidos...
Como eu te entendo Bruno!!!
Este texto carrega a realidade de tantos, para quem a noite é o encontro com os monstros" que nem a luz conseguem incomodar...
Obrigada pela tua partilha