quarta-feira, 7 de abril de 2010

A ladeira

Às vezes tenho destas coisas. Lembro-me de alguma coisa que quero fazer e depois só descanso quando a faço mesmo, nem que seja sozinho, como ali, naquele sitio.
As pernas a parecerem pesar o dobro do que costumam pesar, de bicicleta ao lado naquela ladeira que parecia não terminar. Barulho, só o dos pássaros a cantar, se é que a isso se pode chamar barulho, por entre a minha respiração esforçada e os meus passos arrastados.
No conforto de um muro ali à beira da estrada, de costas assentes no branco da cal e pés cravados na areia batida, alguém falou comigo quando eu já com a cabeça noutro lado me preparava para seguir viagem

- Está tudo bem consigo jovem?

Que bem me sabe quando as pessoas me tratam por jovem ou menino. Do outro lado do muro um senhor de idade limpava a testa com as costas da mão esquerda que segurava a boina. Sempre gostei de boinas

- Bom dia! Sim tá tudo bem obrigado!

E um sorriso que me parecia sincero, mas não sei que já vejo mal ao longe

- Como o vi aí encostado há tanto tempo, pensei que estivesse mal disposto

- Pois... encostei-me para descansar, que esta subida parece que não acaba e dei por mim a admirar a vista e a pensar na vida. Mas tá tudo bem, já me ia fazer à estrada.

Na outra mão um saco branco que me parecia de adubo, que largou dentro de uma caleira já seca ao aproximar-se. Não parecia ter menos que 70 anos

- Eu sei que custa porque a vida inteira a subi também. Mas só até aqui, ou daqui até lá acima, nem sei se alguma vez a subi toda de uma vez só. Normalmente paro aqui um bocadinho... Nisso somos parecidos veja lá!

E uma gargalhada sentida que partilhámos os dois

- Viveu aqui a vida inteira?

Um silêncio e um olhar que se ausentou por instantes

- Sim, esta casa já era dos meus pais veja lá...

Achei estranho. Afinal tinha a ideia que antigamente se casava porque tinha de ser e que normalmente se saía de casa dos pais com a respectiva já semeada.

- Olhe eu é a primeira vez que aqui venho mas este sitio faz-me sentir bem, apesar do cansaço... Sou da cidade e sempre vivi convencido que para além daquilo nada interessava, mas agora com o passar dos anos já vejo o campo de outra maneira. Qualquer dia ainda me faço seu vizinho!

Com os olhos a brilhar

- Isso é que era grande coisa! Por aqui quase não há jovens. Há por ai 4 ou 5 crianças, mas assim que chegam à idade de trabalhar fogem daqui como o diabo foge da cruz! Quando andam na escola já os vemos pouco, de maneira que isto aqui é só velhos chatos durante o dia e à noite, dorme-se para apanhar o fresco da manhã.

- O senhor a mim não me parece chato nenhum. Eu gosto muito do sentido de humor dos velhos, acho que como já falaram e já disseram tanto, sabem sempre melhor do que nós o momento certo para falar. Como a oportunidade faz o ladrão, conseguem sempre roubar-me um sorriso, mesmo que escondido, quando o assunto é sério.

- Isso diz você que parece boa pessoa, mas nem todos pensam isso que eu sei. Mas olhe que é melhor seguir viagem que o sol já aperta. Se quiser encha aqui o cantil que a água sai fresquinha, ao menos isso.

E com isto virou costas e pegou na saca de adubo que eu já julgava esquecida. Se calhar com a idade o nosso horário biológico encurta as folgas e ele já sentisse que eu o estaria a distrair do essencial. Talvez já se tivesse distraído tantas vezes que agora tal lhe seria impossível.

- Obrigado mas ainda tenho o cantil cheio. O médico bem me diz para eu beber muita água, mas nem sempre apetece...
Mas é isso mesmo! Vou-me mas é fazer à estrada. Soube-me bem esta paragem aqui a meio da ladeira.

- Vá! Faça boa viagem de volta à cidade. Mas vai continuar a subir a ladeira?

- Normalmente acabo aquilo que começo. Depois vou à volta que eu almoço tarde!

Com a saca de adubo esquecida de novo, levanta a mão com que ajeitava a boina e num sorriso

- Faça boa viagem e até à próxima!

E eu com pena das palavras que acabaram por não ser ditas e com tanta curiosidade para descobrir as que ainda se dirão

- Até à próxima!

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