sábado, 29 de maio de 2010

Avó Hortense

Matava as cobras com uma enxada e depois ia mostrar-mas, de sorriso matreiro a meter-me medo. Escolheu um homem, casou, teve filhos e depois ele partiu, sem avisar. Nem cheguei a conhecer o meu avô materno, lembro-me dela sempre sozinha com um brilho nos olhos ao ver os netos.

- Cada vez tás mais parecido com o teu avô...

Sentia-lhe a tristeza no olhar quando ela me dizia aquilo. Uma pessoa tem que se agarrar a qualquer coisa e talvez ela veja em nós um bocadinho do que perdeu tão cedo. Afinal não estava sozinha, nunca a deixámos estar.
Contava-me histórias de um admirador secreto que à noite virava um monstro qualquer e subia à laranjeira que ainda lá está para a espreitar e das bruxas que se juntavam no casal ali ao lado. Um dia o marido de uma queimou-lhe as pegadas e no dia a seguir foi descobri-la coxa, de pés queimados. Nunca mais me esqueço destas histórias.

- Vocês hoje têm tudo!

E eu a querer uma prancha nova e aquela bicicleta que vi na loja de BTT.

- No meu tempo uma sardinha tinha que dar para quatro pessoas...

E aposto que se lembrava do meu avô a beber vinho para ajudar o pão a ir para baixo. E eu com um prato cheio à frente, a queixar-me por ter que comer as couves enquanto as punha na borda do prato.
E as paredes que quando chegava o sol ela caiava, por obrigação ao amor que nunca perdeu. As paredes da casa que o meu avô ajudou a construir ainda lá estão, a assinalar de onde nós viemos, porque não somos só feitos de memórias.

- Agora já nem para trabalhar eu sirvo. Este corpo só anda aqui a estorvar...

E eu rio-me porque as pessoas realmente valiosas nunca têm noção do que valem para os outros. Uma alma santa, logo eu que não acredito em santos. Não lhe vejo ponta de maldade, nunca vi. Às vezes um protesto ou outro, mas afinal, como se sentirá uma pessoa quando perde a independência depois de velha?

- A minha casa é lá no cemitério, ao pé do teu avô.

Um misto de revolta e de compreensão, afinal que sei eu da saudade que ela sente do meu avô? Mas depois sinto-lhe tanto medo da morte... talvez hesite entre as saudades dos que ainda cá ficaram e a outra a que se calhar já se habituou.
Nós vamos aproveitar o que nos resta contigo, que a casa está lá guardada mas por enquanto fica mais um bocadinho, porque o que é bom não tem sempre que acabar cedo demais.

3 comentários:

Anónimo disse...

Uma avó que também é um bocadinho minha… aproveita muito bem e dá-lhe um beijinho e um abraço bem apertado por mim…

Bruno Leal disse...

Eu até dava se soubesse quem és... :)

José Leal disse...

O meu corpo relativamente jovem está sentado no sofá, enquanto que o meu olhar capta a saída de um caixão do interior de um avião militar. Lá dentro vai um corpo acabado que uma alma anteriormente ocupou, e que devido ao colapso do mesmo teve de abandonar e partir. É nestes momentos que me apercebo o quão frágil e ingrata é a existência humana... tantos corpos sem vida interior se mantêm por aí a circular na rua e estorvar os que querem viver, e alí diante dos meus olhos segue um corpo que devido ao seu prazo ter acabado, obrigou uma alma brilhante a ter de nos abandonar.

É também nestes momento que me lembro de alguém muito especial para mim, a minha querida avó. Mais um exemplo de uma mente jovem condicionada pela fragilidade de um corpo usado.

- Como estás avozinha?
- cada vez pior...Este corpo só anda aqui a estorvar...

Mas o brilho nos seus olhos ao ver os seus netos não engana. Existe ainda muita vida naquele corpo pequeno e franzino. Existe ainda muita força e muita clareza de espírito.

- Se fosses rica compravas-me um Porsche?
- Comprava...

Claro que comprava, mesmo sem saber do que estou a falar, não tenho qualquer dúvida que o faria, com a mesma convição que nos dá os 5 euros para irmos ao café. Mal sabe ela que me dá algo muito mais importante do que um Porsche, dá-me um amor incondicional, dá-me alegria de viver, dá-me vontade de sorrir e acima de tudo uma lição de vida que todos os anos de estudo nunca me poderiam ter dado.

Minha linda avó, espero que esse corpo usado ainda nos permita por muitos mais anos poder usufruir da tua juventude e do teu carinho. Sei que não poderás mais ir matar cobras com a enxada e trazê-las para nos assustar, mas poderás continuar a fazer-nos rir com o teu sentido de humor e acima de tudo continuar a mostra-nos como se pode amar e ser amada de um modo incondicional, qualquer que sejam as barreiras que se atravessem no nosso caminho.

O beijinho e obraço serão entregues, pois esta nossa avó pertence a quem lhe quiser bem, mas melhor do que lhe dar por ti, será tu poderes fazê-lo pessoalmente... ela iria ficar muito contente...