segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Somos feitos de carne



Podemos estar o dia inteiro sentados, à espera de uma nossa senhora qualquer, ou de um Sebastião que chegue numa neblina matinal, de braços cruzados e queixumes numa surdina em que mais parece que nada se diz. Dia após dia, de pés bem assentes na terra, que isso dos sonhos é coisa de loucos e só traz desilusões. E, numa espécie de asco que toda a gente humana expele de vez em quando, num tossir que mais parece um,

- Ladrões!

Esvaziamos o saco que vai enchendo, fechamos a porta, ligamos a TV e esquecemos tudo, afinal para quê vivermos com rancores dentro nós? E imaginamos uma personagem de bigode empoleirado num megafone antigo, de calças à boca-de-sino e camisola de gola alta, que faz da sua vida um protesto, que há-de acabar numa reforma antecipada pelo tempo que lhe roubaram as vitórias dos maus sobre os bons. E agora, aos 60, ainda o vemos por entre os jovens que de vez em quando se unem, por uma causa que lhe é familiar em tanta coisa,

- A luta continua! A luta continua!

A merda da luta que parece não ter fim… E as imagens pesam tanto que às vezes  se torna impossível  ignorá-las.  Instalam-se e crescem de tal forma, que só vemos um bigode empoleirado num megafone espumado e nem um sinal do Sebastião, ou de uma senhora que surja a uns pastorinhos quaisquer, nem sombra de um herói que nos aponte um caminho desbastado, no qual se consiga ver uma luz ao fundo deste túnel escuro pelo qual tacteamos, à procura do caminho certo por entre tantas bifurcações, que no fim, tudo se parece esgotar num jogo da cabra cega sem nenhuma entidade divina que nos valha.


- A culpa é dos políticos!

- A culpa é desses mandriões que vivem à custa do estado…

Parece que não sabem que a culpa em Portugal nunca é de ninguém, que acabamos sempre por dar de um lado e tirar do outro, enquanto cruzamos a generosidade com o maldizer, a inveja com a felicidade, o ser pequeno mas ser único…

- Se deus quiser há-de correr tudo bem!

Cá para mim podem esperar sentados pela omni-ausência de alguém, porque eu prefiro a realidade à ilusão e então respondo sempre na mesma moeda,

- E se deus não quiser? E se nem sequer tiver opinião sobre o assunto e lhe forem completamente estranhos os nossos problemas?

E as pessoas riem-se

- Coitado…

Mais um que se alimenta da própria alma em vez do corpo de deus, servido gratuitamente em forma de hóstias na paróquia mais perto de si, que isso da fome só bate à porta de quem não tem fé.

E falamos à boca cheia da justiça e da injustiça da vida e de como tudo deveria ser. Clamamos por igualdade e solidariedade, mas à segunda deixamos o filho mais novo no colégio, que o mais velho já vai de carro para a faculdade privada, sem que sejamos capazes de pensar na contradição entre as palavras e os actos. Sem que consigamos perceber que a igualdade se esgota na própria condição do ser humano e, que afinal depositamos na humanidade uma esperança infundada.

- Vamos honrar os nossos compromissos!

Numa caravela milenar, à deriva num mar cheio de adamastores que guardam o fim do mundo que há-de ser uma queda de água para o infinito, ou para a boca dentada de um monstro escabroso, quando afinal estamos sentados em casa, de mãos atadas e olhos vendados enquanto deixamos que nos levem tudo.

- Isto queria era um novo salazar!

E no meio disto tudo, confesso que o que mais me assusta é saber que o medo pode cegar as pessoas…

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O Rambo


O Rambo de Ruivães bem podia ser o nosso zé povinho personificado, um símbolo do povo quando mais falta nos faz. Tem uma empresa a meias com o irmão, mesmo aqui em baixo da minha casa, onde vende os melhores frangos de Lisboa e as melhores imperiais da União Europeia e ali, toda a gente pertence à mesma família.

- Viva primo! Que é que vai ser?

De trás do balcão lança-me um aperto de mão e um sorriso de puto traquina, enquanto vira frangos de óculos na testa e camisa aberta, a mostrar o medalhão de ouro com a santa lá da terra, que o Rambo pode ser duro de roer, mas a fé faz falta a toda a gente. De ténis confortáveis, que aquilo são muitas horas de pé e aposto que ainda lhe junta umas meias de descanso com a frequência diária da boina branca que o irmão Nelinho usa, enquanto festeja cada café servido com troco dado e tudo.

- Missão cumprida! Religiosamente!

E aquilo parece-me uma blasfémia propositada, uma ironia sem ponta de piada, porque ali, naquela empresa de balcão de alumínio e janela para a avenida, nada é sagrado a não ser as brasas do frango e as imperiais bem tiradas. E o Rambo, sempre ele, de avental pela cintura e dentes arreganhados, porque afinal o sorriso é como outra coisa qualquer, se não lhe damos uso torna-se velho e cansado.

- Família!

E ergue os dedos num “V” de vitória bem acima da cabeça, porque o mundo não pode ser só das cores que nós vemos, nem nós podemos viver presos nas dimensões da nossa forma. Por isso ali a crise não entra e pagam-se rodadas como se fossem os homens mais ricos do bairro, de barriga encostada ao balcão e espuma branca no canto do bigode mal aparado, mas o rambo não, que um militar à séria não se dá a esses desleixos.

- Coitado… Apanhou a mulher com outro e ficou assim.

Um desgarrar de histórias infelizes que se choram naquele balcão, confortadas por um copo de vinho caseiro ou um cálice de medronho, que limpa a tristeza e devolve um sorriso às caras vazias de esperança e aos bigodes fechados e roídos pelo nervoso miudinho de uma falta de coragem a tempo inteiro. Porque na empresa do Nelinho e do Rambo, o sonho confunde-se com a realidade como no inicio do sono, e damos por nós a caminhar por outro mundo paralelo.

- No Vietname não havia dentistas!

Eu quando ali entro sou um antigo companheiro de guerra do Rambo e dou por mim a lembrar-me dos dois no meio do mato, de G3 na mão e faca presa nos dentes, enquanto desbravamos caminho por um pântano qualquer que nos esconde dos pequenos homens amarelos que nos querem matar. Falamos dos que salvámos e dos que matámos também e recordamos histórias de pequenas conquistas vietnamitas, em que ele, acaba sempre por dizer qualquer coisa que me faz rir sem conseguir dizer mais nada.

- São uma cambada de putas e xulos!

Eu dou-lhe razão e lembro-me dos dias maus em que me sacou um sorriso, dos segundos em que me tornou sonhos em realidade e saio dali com a certeza de tudo, pelo menos até ao virar da esquina, em que já duvido que tenha estado no Vietname com ele. Mas depois encontro à porta de casa a antiga glória do Benfica, que jogou com o Eusébio e mando à fava realidade e fico-me pelo surrealismo deste quarteirão da Afonso III, afinal que piada tem a vida se não sonharmos acordados de vez em quando?