quarta-feira, 5 de maio de 2010

A certa altura

Lembro-me de quando era puto e vivia sem preocupações nem responsabilidades, preocupado apenas com os jogos que queria ganhar e com as miúdas que queria impressionar.

- Queres ser minha amiga?

Assim, sem rodeios nem receios de qualquer espécie.

- Queres ser meu amigo?

Quando o rapaz parecia capaz de chegar a casa depois da hora marcada, com arranhões nos braços e a roupa como se tivesse vindo da guerra.
Tínhamos um arbusto que servia de porta de entrada num mundo alternativo, de limões desviados na mercearia e doces comprados com o dinheiro dos avós. Guardávamos aquilo como um tesouro, protegido de outros arbustos também transformados num mundo dos pequenos que queriam ser grandes e maus. Miúda não entrava ali, que eu soubesse ao menos, porque nessas coisas nunca se sabe o que a paixão, mesmo infantil pode fazer. A paixão sempre esteve presente na minha vida, acho que não me lembro de muita coisa antes do meu primeiro feitiço sentimental.

- É uma moedinha para o santo António!

A lata que é preciso ter... Será que com a idade perdemos a lata?
Juntávamos os trocos numa garrafa de água cortada pela metade e aquilo dava para nos encher de pastilhas, rebuçados e coca-cola e ainda sobrava para mantimentos dos arbustos durante uns tempos.

- Queres ser minha namorada?

E andávamos para ali, de mão dada pela rua fora como dois tontos apaixonados, eu a esconder dos amigos, ela a fazer questão que a coisa se oficializasse, a apertar-me a mão e a fincar o pé. Sempre gostei de miúdas assim, que jogam de igual para igual.
No fim de semana andei a vasculhar álbuns de fotografias antigas, talvez daí estas recordações. Quase nunca sei o que vou escrever até escrever a primeira frase, prefiro assim, as coisas fluem melhor quando não são planeadas.
Hoje também tenho o meu mundo paralelo, na porta de entrada aqui da Afonso III, mas é tudo legal, pago renda, recebo um recibo e ainda me devolvem parte do dinheiro todos os anos. É tudo muito complicado, ao menos aqui dentro é tudo bem mais simples.

- Vais tar em casa à noite?

- Epá, não sei...

Sem explicações nem justificações, essa é a parte boa que se ganha com os anos. E a experiência, mas essa às vezes chateia, faz-nos pensar demais e às vezes em própria defesa, perdemos a oportunidade. Mas ganhamos outras, descobertas por entre um cortinado aberto ou uma porta encostada que nos alerta ao sopro de uma corrente de ar.
Acho que trinta e cinco anos é a melhor idade. O arbusto mal de mim se não o tiver, os doces e as guloseimas são diferentes e as miúdas acho que já não acham muita piada a essa tanga de querer ser amiga, mas não sei, a certa altura deixei de perguntar...

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2 comentários:

[anna] disse...

sem demoras... sem ensaios. um dos melhores. teus.
um beijinho
Ana

Jovem Carapinha disse...

Sim sr, estás a ir pelo caminho certo Bruno.
Até te dou um conselho, compra um bloco e anda sempre com ele, nunca se sabe qd chega a inspiração. Depois colocas aqui pra nós podermos desfrutarmos dos teus ensaios.