quinta-feira, 29 de abril de 2010

Demora

A tristeza é uma cabra velha. Aparece como quem não quer a coisa e deixa-se ficar por ali, não liga a sinais nem a palavras e só vai embora à força das atitudes.
A felicidade, uma miúda gira que chega e parte num suspiro breve, que queremos que demore sempre mais.
Deixa-se estar ali a velha, com um espelho de superfície perfeita na mão, que despe todos os nossos defeitos ocultos, todos os ângulos mortos e todas as arestas falhadas. Num suspiro se instala sem que se vá no seguinte e mesmo que aquela miúda gira passe, ela fica, de espelho apontado e olhar mortiço. A velha tem chagas, que precisam de tratamento, a outra não fica assim, não gosta, nem nós queremos que ela apareça sequer. Uma de surpresa, com hora marcada ou daqui a uma semana a qualquer hora, sem que nos pergunte se pode vir, a outra cheia de timidez, fugindo ao que recusa enfrentar.
Acha-se boa demais.
Gira, mas snob o raio da miúda.
Uma cola-se na sola do sapato, a outra escorrega-nos por entre os dedos. Traz-nos as dúvidas e as inseguranças, descobre-nos os prós e os contras que preferíamos não saber, e ensina-nos a viver com ela de braços atados na corda bamba. A outra passa e sorri, mais umas vezes e já pisca o olho, até que um dia pára ali perto. Ao inicio ainda nos vemos a nós, despidos, inseguros na nossa nudez púdica a desviar o olhar, com medo que ela nos veja as fraquezas, que nos descubra os defeitos.
Até que um dia a olhamos nos olhos e no outro já lhe piscamos o olho, sorrimos e ela fica mais um pouco até partir. Talvez da próxima sejamos nós a procurá-la em vez de ficar ali à espera, à mercê do raio da velha e do seu espelho de superfície perfeita. Chegamos e sorrimos-lhe. Perguntamos o nome e dizemos o nosso num sorriso que dispensa espelhos, dizemos que é um prazer e é mesmo, sentir-lhe a pele das mãos, sentir-lhe o perfume da pele e descobrir um sorriso no olhar. E um vento há-de vir que sopra a velha dali para voltar com aviso, mas da próxima por menos tempo que eu sei, com hora marcada para partir mas ainda sem hora para voltar.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

De Sines

Já foi terra que deu muita e boa uva, mas hoje, parece que a parra cobre a cepa e não deixa a uva crescer.
E tudo fica na mesma, porque para podar não parece haver ninguém e os que dizem que o fazem, foram mal ensinados.
Mas não é de cepas nem de uvas que vive a nossa terra (sinto-a sempre mais minha quando estou com ela), é de mar e de peixe e do corpo de muitos.
Não sei se seria capaz de voltar a estar em Sines a tempo inteiro, pelo menos assim, com ela perdida e abandonada, refém do conformismo de alguns, presa pelo hábito de outros que lhe trazem tão pouca alegria. O sol brilha e ilumina-a e ela é sempre bonita, mesmo com as ruas moribundas e as encostas mal aparadas, mas são as pessoas que a fazem, são elas que lhe dão vida e ela vive tão pouco hoje em dia. Chega a dar dó um sitio assim tão mal acompanhado. Para os que querem ou podem é mais fácil sair e visitá-la de vez em quando, para os que ficam é mais fácil fechar os olhos e tomar como dela os defeitos de outros, no fundo, somos todos culpados.
Os capatazes que a regem, esses, vão de mal a pior. Antigamente vestiam-se de vermelho, contra tudo e contra todos, sem perceberem que contra ela também. Hoje um grupo de gente sem ideais, à mercê de um homem que vira para onde quer que o vento sopre, parecendo agora soprar para outros que de honra e de palavra nada parecem saber.
O presente nada de bom augura para o seu futuro, salvo raras excepções e pequenas pérolas que a destacam pontualmente das outras terras. Mas nada ganhamos com o pessimismo, por isso eu deixo-o para trás, porque escrevo numa dessas excepções, quem sabe uma pérola, sem saber o que fiz para merecer fazer parte dela. Vejo-a como um apeadeiro no qual já não passam comboios e que agora serve de palco aos que não têm voz e precisam de falar e ao que parece, até os seres mais inesperados a ela recorrem em altura de desespero. E ela aceita todos, de braços abertos e sorriso na cara, tal como a terra onde nasceu, erguida de frente para o mar, nas suas artérias sinuosas em que se perdeu, mas nas quais sei que se voltará a encontrar.

no "estação de sines" por Bruno Leal

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A ladeira

Às vezes tenho destas coisas. Lembro-me de alguma coisa que quero fazer e depois só descanso quando a faço mesmo, nem que seja sozinho, como ali, naquele sitio.
As pernas a parecerem pesar o dobro do que costumam pesar, de bicicleta ao lado naquela ladeira que parecia não terminar. Barulho, só o dos pássaros a cantar, se é que a isso se pode chamar barulho, por entre a minha respiração esforçada e os meus passos arrastados.
No conforto de um muro ali à beira da estrada, de costas assentes no branco da cal e pés cravados na areia batida, alguém falou comigo quando eu já com a cabeça noutro lado me preparava para seguir viagem

- Está tudo bem consigo jovem?

Que bem me sabe quando as pessoas me tratam por jovem ou menino. Do outro lado do muro um senhor de idade limpava a testa com as costas da mão esquerda que segurava a boina. Sempre gostei de boinas

- Bom dia! Sim tá tudo bem obrigado!

E um sorriso que me parecia sincero, mas não sei que já vejo mal ao longe

- Como o vi aí encostado há tanto tempo, pensei que estivesse mal disposto

- Pois... encostei-me para descansar, que esta subida parece que não acaba e dei por mim a admirar a vista e a pensar na vida. Mas tá tudo bem, já me ia fazer à estrada.

Na outra mão um saco branco que me parecia de adubo, que largou dentro de uma caleira já seca ao aproximar-se. Não parecia ter menos que 70 anos

- Eu sei que custa porque a vida inteira a subi também. Mas só até aqui, ou daqui até lá acima, nem sei se alguma vez a subi toda de uma vez só. Normalmente paro aqui um bocadinho... Nisso somos parecidos veja lá!

E uma gargalhada sentida que partilhámos os dois

- Viveu aqui a vida inteira?

Um silêncio e um olhar que se ausentou por instantes

- Sim, esta casa já era dos meus pais veja lá...

Achei estranho. Afinal tinha a ideia que antigamente se casava porque tinha de ser e que normalmente se saía de casa dos pais com a respectiva já semeada.

- Olhe eu é a primeira vez que aqui venho mas este sitio faz-me sentir bem, apesar do cansaço... Sou da cidade e sempre vivi convencido que para além daquilo nada interessava, mas agora com o passar dos anos já vejo o campo de outra maneira. Qualquer dia ainda me faço seu vizinho!

Com os olhos a brilhar

- Isso é que era grande coisa! Por aqui quase não há jovens. Há por ai 4 ou 5 crianças, mas assim que chegam à idade de trabalhar fogem daqui como o diabo foge da cruz! Quando andam na escola já os vemos pouco, de maneira que isto aqui é só velhos chatos durante o dia e à noite, dorme-se para apanhar o fresco da manhã.

- O senhor a mim não me parece chato nenhum. Eu gosto muito do sentido de humor dos velhos, acho que como já falaram e já disseram tanto, sabem sempre melhor do que nós o momento certo para falar. Como a oportunidade faz o ladrão, conseguem sempre roubar-me um sorriso, mesmo que escondido, quando o assunto é sério.

- Isso diz você que parece boa pessoa, mas nem todos pensam isso que eu sei. Mas olhe que é melhor seguir viagem que o sol já aperta. Se quiser encha aqui o cantil que a água sai fresquinha, ao menos isso.

E com isto virou costas e pegou na saca de adubo que eu já julgava esquecida. Se calhar com a idade o nosso horário biológico encurta as folgas e ele já sentisse que eu o estaria a distrair do essencial. Talvez já se tivesse distraído tantas vezes que agora tal lhe seria impossível.

- Obrigado mas ainda tenho o cantil cheio. O médico bem me diz para eu beber muita água, mas nem sempre apetece...
Mas é isso mesmo! Vou-me mas é fazer à estrada. Soube-me bem esta paragem aqui a meio da ladeira.

- Vá! Faça boa viagem de volta à cidade. Mas vai continuar a subir a ladeira?

- Normalmente acabo aquilo que começo. Depois vou à volta que eu almoço tarde!

Com a saca de adubo esquecida de novo, levanta a mão com que ajeitava a boina e num sorriso

- Faça boa viagem e até à próxima!

E eu com pena das palavras que acabaram por não ser ditas e com tanta curiosidade para descobrir as que ainda se dirão

- Até à próxima!