quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Já não há revoluções

Há-de haver alguém que um dia acorde velho, de testa enrugada e orelhas crescidas de tanto ouvir o que os outros dizem, mesmo sem querer, mesmo sem que sequer dê por isso. Que acorde um dia e sinta que grande parte das coisas que achava importantes, lhe são agora estranhamente irrisórias, como se a vida tivesse sido encurtada, e só lhe sobrasse o amor e o respeito que se conquista à custa de atitudes.

- Eu já não tenho tempo para sonhar!

E eu que não consigo imaginar a vida sem sonhos a ouvir isto. Dito pelo mais velho dos 3 homens, que estavam sentados comigo na mesa do café que agora me serve de refúgio, e onde, sempre que consigo, escrevo frases soltas que depois hei-de juntar para formar um texto qualquer, sobre qualquer coisa que nunca sei bem o que será.

- Eu fui perseguido pela PIDE só por ser amigo do Zeca Afonso!

E eu tenho medo do dia em que acorde e sinta que já não tenho tempo para sonhar. Os velhos a mim parecem-me crianças sem medo

- Hoje já não há revolucionários!

Acho que se esgotou o stock há algum tempo, mas espere um bocadinho que eu vou ali ao armazém ver se ainda há alguma coisa.

- Nada!

E a resignação que chega e já não quer sair.

- Quer que eu veja se temos noutra loja?

Não quero obrigado, que isso não se arranja assim à segunda tentativa. Acho que nisso os revolucionários são como as mulheres, ou não há dúvidas de que valem a pena, ou então mais vale não andar a insistir.

- Já não há homens como antigamente...

Hoje quando cheguei a Lisboa nascia um arco-íris nas Amoreiras que só terminava na outra margem do rio Tejo.

- Paz sim, Nato não!

Comunistas barrigudos, de bigode farto e cara de beberrões, freaks de rastas a tocar tambores e pandeiretas, de cartaz numa mão e garrafa de cerveja na outra, policias que mais pareciam robocops a cada esquina, alinhados em linhas paralelas às ruas sobrevoadas por helicópteros, com amostras de anarcas dispersos e demasiado jovens para poderem sequer ser independentes, quanto mais anarquistas a sério.

- Onde é que você estava no 25 de Abril?

E eu não quero responder que estive em casa, ou que nem dei por isso se dar. O arco-íris tomou-se-me como um aviso qualquer e ali estava eu no meio daquele circo todo. Pareceu-me ver ao virar da esquina alguém erguer um megafone e começar ali uma manifestação sozinho, mas o megafone afinal era da Sagres e dali só se ouviu vir um arroto, que me pareceu outro sinal qualquer para me ir embora.

- Quarta-feira fazemos greve!

Quando era criança queria ser sempre da equipa que ganhava, porque é que agora ando preocupado com a justiça das coisas?

- Não há falta nenhuma! Ganhámos!

Acho que foram as pessoas que me mudaram, os amigos que escolhi não perder, as lições de criança dos pais que a gente vai percebendo em pequenas coisas, as provas de amor que não se agradecem, as amizades construídas degrau a degrau, os silêncios conquistados, a paz interior em minutos que nos valem uma vida inteira.

- Hoje já ninguém se importa com nada!

Agarramo-nos a quê se parece que não temos nada quando há tanta coisa para se querer ter? Às vezes parece que já conseguimos riscar mais um ponto da nossa extensa lista de afazeres mundanos, e lá aparece um novo a repor o peso que carregamos, que canseira... Digo-vos, esta vida assim é fodida!

- Vou para o Rossio ver se acontece alguma coisa...

Um circo montado para depois não acontecer nada, isto sim, é um desperdício de tempo e dinheiro. Acho que vou ser a vida toda um sonhador, que se passeia pela praça a fingir-se interiormente o revolucionário que os velhos choram a ausência. Traçando estratégias, delineando possíveis fugas que me libertem do peso de sentir como é frágil a nossa liberdade.

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