terça-feira, 17 de agosto de 2010

Um dia conto

- Para que queres esse bicho?

- Que tens tu com isso?

Uma alforreca num saco de plástico transparente cheio de água do mar, do norte, que pelos vistos era melhor para manter o bicho vivo, como  ingrediente de um feitiço daquele livro na cómoda da governanta, uma estranha mulher africana que quase não falava, nem precisava, só ouvia, ouvia tudo. Já por várias vezes me tinha parecido uma esponja de todos os nossos gestos, de todas as nossas frases e expressões, mesmo quando julgávamos estar a sós, como quando a apanhei a ouvir atrás da porta e mais tarde, a falar sozinha no quarto,


- Como é que o menino Pedro ainda é capaz de falar com aquela mulher?


Também não sei confesso, mas há coisas que não podem ser contrariadas, destinos traçados por escolhas feitas e "nãos" adiados. Só pode ser bruxa a mulher! Mesmo angustiado pelo hábito das pequenas derrotas anteriores, o feitiço vira-se contra o feiticeiro se isto da alforreca funcionar, se bem que isso do feitiço é o que menos importa, porque eu só lhe quero sentir um abraço outra vez.


- Vê lá mas é se não me entornas essa merda toda aqui no carro!


As pessoas lá me vão aturando, nem sei porquê às vezes, serei só eu ou também eles terão a esperança secreta de que um dia, mais tarde ou mais cedo, nascerá em mim um novo homem? Um parto eterno, sem dor maior nem menor, num silêncio que só se desfaz nestas conversas que vamos mantendo com nós próprios. Mas as coisas são o que são, e agora aqui estou eu fiando-me num livro de uma governanta africana, que se não é bruxa, ouve atrás das portas e lamenta o rumo da vida dos outros secretamente, provavelmente uma louca, se é que esse termo significa alguma coisa.

- Está descansado. E não ligues o rádio que isto deve ser feito em silêncio.

Eu e o silêncio, já devia saber que isso é coisa que não existe, que eu bem sei que temos sempre uma coisa cá dentro a traulitar-nos palavras, e se eu me ponho para aqui a martelar sobre o que pensará quem me vir com estes apetrechos, ainda lhe peço para parar e despejo isto na berma da estrada e lá se vai o abraço e a lição àquela mulher.

- Depois admiras-te que te chamem maluquinho!

Pouco importa que me chamem maluco, quando há para aí tantos, aprumados entre 2 paredes de regras intermináveis, com ares de gente respeitável e séria, sorrindo ordeiramente ao destino que lhes está reservado.

- Seja o que deus quiser!

E se ele não quiser nada nem sentir nada? Se não vir nada, ou se não se importa sequer?  Ainda terei direito ao meu abraço?

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