Desfio o tempo com os dedos, mas já não há tempo que apague
as dores. Tive um monstro cá dentro, mas arranquei-o com uma enxada. Falta-me
um peito, mas nunca consegui arrancar o coração. Queria mandá-lo para ti. Ele
nunca deixou de ser teu. Estranho tudo em meu redor. Choro num canto escuro por
entre a noite. O bicho gosta. É de lágrimas que ele se alimenta. Estou viva,
mas não entendo porquê. A vida não tem de ser entendida. Mato saudades nos
sonhos. As tuas mãos nas minhas. O teu calor no meu frio. Sempre tive frio a
mais e tu calor de sobeja. O teu coração era tão forte que implodiu e eu tenho
uma ferida que não sara. Coço a perna e sinto o coração. Recebo ordens, pouco
mais sou do que um corpo sem vontade. Queixo-me. Quem não se sabe queixar? Será
vontade no meu corpo? Choro, mas não verto lágrimas. Matei o bicho à enxadada.
Acho que gastei as lágrimas todas aí. Despeço-me de todos pela última vez mas o
amanhã não deixa de chegar. De vez em quando sorrio. Não preciso de dentes para
sorrir. Morreste mas o peito só saiu arrancado. Cada um que mate os seus
bichos. Nunca foste a lado nenhum, eu nunca te deixei partir. Fecho os olhos e
vejo-te. Às vezes também vejo os meus netos. Às vezes encontro os meus filhos.
Nunca deixamos de ser mãe. Morre-se e a mãe fica cá com os filhos. Choro pelos
cantos. Alimento o bicho com lágrimas. Nunca chegaram a secar. Chega! Enfio as
mãos pela barriga, desvio as vísceras e vou-lhe ao pescoço. Afinal não preciso
de enxada nenhuma. Nada me dói, mas eu choro? Que lágrimas são estas que me
correm? Vou-lhe ao pescoço e não o deixo respirar. Invento dores. Tenho pena de
mim. Tudo me faz mais fraca. O amor traz-me medo agora. Só medo e nenhuma
coragem.Não me reconheço, pequena e frágil. Sou tão pequena como o bicho. Do
tamanho de um bago de uva. Mas de mim não sai vinho nenhum. Às vezes sangue,
mas lágrimas não. Fecho os olhos e vejo-te. Cá dentro já só brilhas tu. Quando
morrer hás-de estar à minha espera, mas a morte não chama por mim. Tenho medo.
O bicho cresce mas eu não largo. Hei-de esganá-lo sozinha. Fecho os olhos e
dás-me as mãos. A tua força. Levas o bicho contigo mas deixas-me cá. Um dia
levas-me a mim. Hoje não. Hoje não.