quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O bicho



Desfio o tempo com os dedos, mas já não há tempo que apague as dores. Tive um monstro cá dentro, mas arranquei-o com uma enxada. Falta-me um peito, mas nunca consegui arrancar o coração. Queria mandá-lo para ti. Ele nunca deixou de ser teu. Estranho tudo em meu redor. Choro num canto escuro por entre a noite. O bicho gosta. É de lágrimas que ele se alimenta. Estou viva, mas não entendo porquê. A vida não tem de ser entendida. Mato saudades nos sonhos. As tuas mãos nas minhas. O teu calor no meu frio. Sempre tive frio a mais e tu calor de sobeja. O teu coração era tão forte que implodiu e eu tenho uma ferida que não sara. Coço a perna e sinto o coração. Recebo ordens, pouco mais sou do que um corpo sem vontade. Queixo-me. Quem não se sabe queixar? Será vontade no meu corpo? Choro, mas não verto lágrimas. Matei o bicho à enxadada. Acho que gastei as lágrimas todas aí. Despeço-me de todos pela última vez mas o amanhã não deixa de chegar. De vez em quando sorrio. Não preciso de dentes para sorrir. Morreste mas o peito só saiu arrancado. Cada um que mate os seus bichos. Nunca foste a lado nenhum, eu nunca te deixei partir. Fecho os olhos e vejo-te. Às vezes também vejo os meus netos. Às vezes encontro os meus filhos. Nunca deixamos de ser mãe. Morre-se e a mãe fica cá com os filhos. Choro pelos cantos. Alimento o bicho com lágrimas. Nunca chegaram a secar. Chega! Enfio as mãos pela barriga, desvio as vísceras e vou-lhe ao pescoço. Afinal não preciso de enxada nenhuma. Nada me dói, mas eu choro? Que lágrimas são estas que me correm? Vou-lhe ao pescoço e não o deixo respirar. Invento dores. Tenho pena de mim. Tudo me faz mais fraca. O amor traz-me medo agora. Só medo e nenhuma coragem.Não me reconheço, pequena e frágil. Sou tão pequena como o bicho. Do tamanho de um bago de uva. Mas de mim não sai vinho nenhum. Às vezes sangue, mas lágrimas não. Fecho os olhos e vejo-te. Cá dentro já só brilhas tu. Quando morrer hás-de estar à minha espera, mas a morte não chama por mim. Tenho medo. O bicho cresce mas eu não largo. Hei-de esganá-lo sozinha. Fecho os olhos e dás-me as mãos. A tua força. Levas o bicho contigo mas deixas-me cá. Um dia levas-me a mim. Hoje não. Hoje não.